“Without the Beatles”: onde o pop é mais experimental
Ou seria onde o experimental é mais pop? Henrique Iwao e Mário del Nunzio lançam versões únicas de clássicos do grupo inglês
Os músicos e artistas sonoro Henrique Iwao e Mário del Nunzio lançaram em março o disco Without the Beatles, no qual apresentam releituras de músicas da banda inglesa a partir de associações livres, improvisos e colagens que se aproximam ou não das originais. Para quem conhece o trabalho de ambos, é difícil imaginá-los se debruçando sobre a obra de um dos maiores fenômenos pop de todos os tempos, mas eles explicam: o projeto é bem mais antigo e as ambições iniciais não tinham nada de modestas, assim como as referências para criação também não vinham do universo da indústria fonográfica.
O disco é, antes de tudo, um exercício de imaginação. A provocação contida na ideia de fazer versões improvisadas nos faz imediatamente tentar ouvir qualquer coisa que resta ali do original e ansiar pelo que se ergue da desconstrução. O método não é uma novidade, segundo os próprios músicos, eles se inspiraram nas Verdi Transcriptions de Michael Finnissy — uma das mais importantes e impressionantes obras do pianista inglês.
É claro que toda suposta “simplicidade”, entre muitas aspas, atribuída aos Beatles nunca fez sentido, sobretudo se consideramos a produção a partir de Rubber Soul, Revolver ou, definitivamente, do Sargent Peppers…
Without the Beatles é aberto com a releitura de “Hello, Goodbye” — ou, “Adeus Olá”, que começa com uma introdução alongada de sons graves produzidos pela vibração de celulares sobre as cordas de um piano preparado. Ruídos, pausas e silêncios procedem em sobreposições de camadas até que as teclas sejam postas em jogo, ganhando corpo e tensão já lá pela metade da faixa, que tem o dobro de tempo da original. As vozes pontuais reforçam a impressão construída ao repetirem “Olá” em momentos pontuais, o que resulta no deslocamento de qualquer possível linearidade.
“Help” se converte em “Ajudai”. O piano repete o pulso mais forte que dá o tom da música, o que percebemos não só por intuição imediata, mas pela disparada de samples com frases da canção que nos localiza no tempo — e mesmo o áudio original aparece de alguma forma manipulado, seja com um loop ou distorção. A releitura fica mais tensa quando são explorados os toques mais graves, momentos espaçados por uma espécie de interlúdios melódicos, criando um clima um tanto diferente da faixa que dá nome ao álbum de 1965 com seu grito de desespero.
O projeto de rever os Beatles a partir de improvisações foi iniciado nas dependências da UNICAMP não apenas por del Nunzio e Iwao, mas contava também com Chicão (Rafael Montorfano, do Quarta Bê e outros) e Lucas Araújo — todos estudantes de música. Segundo contam no texto de encarte, o material principal foi gravado ao longo de três sessões extenuantes no auditório da universidade. Retomado apenas em 2023, o material foi revisto e desmembrado (assim como o material do grupo, também).
Os títulos das faixas são todos brincadeiras com possíveis traduções. A melodia para “Patati Patatá” traz uma cadência divertida que é, a cada sequência, interrompida por curtos intervalos, ora mais curtos ou mais longos e não repetidos, com mais ou menos notas e acordes. Soa quase como irônica, assim como a inspiração para o título, e “a vida vai…”. Quanto a contrastes, é em “Amarelo Submarino” que grave e agudo dançam juntos sem se enlaçar, sobrepostos um ao outro por terem sido obtidos em gravações distintas, que mexem nos andamentos e no ritmo — chiclete e que se repete no refrão infinito da música original.
Com 8 faixas que duram entre 5 e pouco mais de 7 minutos, Without the Beatles pode até não ser um pioneiro na ideia da criação de versões experimentais no estilo como se apresenta, mas certamente é uma criação dedicada e divertida. Me lembrou o recém-lançado álbum do Sergio Krakowski Trio & Jards Macalé em homenagem a Zé Keti. Ambos projetos que poderiam muito bem constar da programação de festivais do nicho.