“Virada Sônica: a escalada do som na arte contemporânea” traz ícones consagrados e novíssimos da arte sonora a São Paulo

Exposição ocupa dois andares do Farol Santander e instiga o público a imaginar formas distintas de pensar o som

PoroAberto
5 min readJul 6, 2024

A exposição Virada Sônica: a escalada do som na arte contemporânea contempla o que esta tem de menos óbvio nas produções realizadas nas últimas décadas: obras que exploram aspectos intangíveis do mundo sensível, vão além da ordem estética ou da necessidade de interferência sobre o mundo social, em que tanto a ancestralidade, quanto a tecnologia de ponta servem como meio e mídia. E, óbvio, tem o som como mote de sua criação.

Ocupando os andares 23 e 24 do Farol Santander, no centro de São Paulo, mais uma parte do clássico mirante do edifício, Virada Sônica é fruto da curadoria do carioca Chico Dub, idealizador do Festival Novas Frequências — um dos mais relevantes festivais de música experimental e arte sonora da América do Sul.

As obras se dividem em “blocos” que são tanto temáticos, quanto guardam relativa historicidade em comum. Já as formas como o som figura em cada criação, como é esperado na arte contemporânea, incorporam as mais diversas materialidades, mídias, superfícies, conceitos, tecnologias etc.

O bloco #1 remonta a trabalhos clássicos, como a icônica peça 4’33’’ (1952), de John Cage, na qual o músico descortina a pluralidade sonora constante ao nosso redor e desloca a aura sacra da música e do silêncio. Ao lado dele, o não menos emblemático livro-arte Grapefruit, de Yoko Ono, marco da arte conceitual que a artista dedicou tanto a Cage, quanto a outros compositores experimentais, como La Monte Young. Dividem, também, o mesmo espaço expográfico o pernambucano Paulo Brusky, com sua Música — um vasilhame de vidro com tampa de metal com um rótulo no qual lemos “música”, preenchido com macarrão (penne) e sementes -, parte de sua produção da década de 1970; além de Vivan Caccuri com uma peça de sua série Escutar é uma utopia. A carioca de 38 anos é uma das mais significantes expoentes da arte sonora e contemporânea brasileira.

À frente estão reunidas esculturas sonoras absolutamente diversas entre si. O trio Chelpa Ferro capta com microfone ligado a um mixer o espaço interno de caixas de som modificadas e esvaziadas em Ocos, de 2024; na obra do mexicano Rafael Losano-Hemmer o passado e o futuro da tecnologia se encontram num complexo processo de decifrar tomograficamente a primeira gravação de voz realizada, em 1860 — ou melhor, a respiração que exala da fala — e sua materialização em uma escultura 3D. O orixá sonoro de Marco Scarassatti, é uma peça tridimensional que produz uma quarta camada: o som. Èșù, mais do representar fisicamente o orixá, busca ser uma ponte poética entre o mundo material e o espiritual da cosmologia yorubá.

O objeto cinético do argentino Daniel Palácios, Wave, é uma das favoritas dessa que voz fala pela beleza criada pelo movimento básico da física do som e da própria sonoridade que dela sai. Em contraste, a escultura sonora em cobre e latão de Harry Bertoia, uma das últimas criações do italiano radicado nos EUA, que faleceu em 1978.

Ao descer para a segunda parte da exposição, encontramos entre os andares uma densa parede de tijolo sonora que emula um grande soundsystem, reproduzido ao infinito pelas paredes laterais de espelho do edifício. Um espaço para contemplar a beleza da obra, mas também para imaginar mundos, danças e situações coletivas diversas. Ao adentrar a outra sala destinada à Virada Sônica, mais dois artistas fundamentais: Walter Smetak, o suíço que fez carreira como professor da Escola de Música da Universidade Federal da Bahia em meados dos anos 1960, alterando para sempre a percepção e modo de fazer música não só experimental, mas também popular, explorando a plástica de objetos com criativas esculturas sonoras; o painel de colagens do americano Christian Marclay, Ephemera: a musical score, é uma mostra da obsessividade que permeia sua obra, cuja sonoridade exala pela visão, pelas associações, pela fala, pelo instante. Marclay é, certamente, um dos artistas mais interessantes dos últimos 40 anos, com sua prática de explorar tanto as belas artes, quanto as culturas de áudio, desde sua experiência pioneira com o que viria a ser o turntabilism.

Assim, os blocos #3 e #4 definem a inserção definitiva da arte relacionada ao som nas instituições, no pensar e fazer artístico. Além dos novos e novíssimos artistas brasileiros que se destacam nessa seara, e outros latino-americanos. Dos primeiros, a musicista experimental carioca BELLACOMSOM e o compositor, professor e tradutor baiano Tiganá Santana. Se na última Bienal de São Paulo Tiganá apresentara, junto a Ayrson Heráclito, a instalação imersiva Floresta de Infinitos, aqui monta, pela segunda vez, Ilês, Aiyês, Carnavais e Ancestrais, uma homenagem aos 50 anos do bloco afro da Bahia, originalmente exposta na última edição do Novas Frequências, que teve como tema o “Riso Ritual’. Outra artista que também já participou do Novas Frequências e integra a mostra é a chilena Nicole L’Huillier, com sua recente peça interativa Cuchicheos (Stereo), de 2024.

Os novíssimos artistas multimídia brasileiros, como Antiribeiro e Ciana, possuem trabalhos que se mesclam às suas atividades como DJ’s e participação em festas eletrônicas entre Rio de Janeiro e São Paulo. O objeto sonoro de Ciana, Beat Bolha, dialoga diretamente com o ritmo de funk surgido nos morros cariocas. Do Pará, PV Dias emula a lenda da Boiúna em Cobra Grande Sound, um soundsystem ultracolorido. Diz a lenda que quando a cobra, que vive embaixo do solo da cidade, entre a Catedral da Sé e a Basílica de Nazaré, se movimenta, a cidade treme. Caso ela acorde, a cidade afundará. A lenda e o objeto resumem um pouco da cultura sonora popular do Pará.

Ao todo, são quase 30 artistas na exposição. Ancestralidade, tradição, ciência, tecnologia e poéticas as mais diversas integram os pensamentos e construções artísticas, criando um cenário diverso em que cabem a rua, a academia, os terreiros e os laboratórios. O som, uma vez emitido, perde-se no infinito da atmosfera. Mas há quem se inspire no contrário: Lozano-Hemmer, por exemplo, toma para si a declaração do matemático Charles Babbage, de 1837, de que a atmosfera é uma vasta biblioteca que contém todas as palavras que foram ditas no passado.

Por mais que tenha tentado construir aqui um panorama descritivo sobre obras e artistas, ainda há muito mais por ver em Virada Sônica. E não deixem de subir até o mirante para aproveitar a vista e os curiosos super fones do Espelho Sonoro de Rodrigo Ramos.

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