Uma cidade padece: Goiânia, que já é carente de espaços de cultura e lazer, proibe o samba do Breguella’s e mata a ressignificação da galeria de rua
Entra ano e sai ano, jovens e adultos boêmios, amantes das artes e da cultura, enfrentam um problema sério na cidade de Goiânia: qual é o rolê? Quando aparecem eventos e movimentações legais que não sejam comandadas exclusivamente pela velha elite aristocrática ou pela demolidora máquina do capital movida pelo agro, eles acabam. Dessa vez, a vítima foi o samba do Breguella’s.
O Breguella’s foi fundado em 1978 como uma lanchonete. Ele fica galeria Condomínio Shopping Center Sul, no setor oeste e se tornou um clássico dos botequeiros e cachaceiros da região (na qual se situa também a lendária “Praça da Cirrose”), o bar sempre foi vizinho de lojas — como o finado e eterno supermecado Cristal, hoje Cristal Festas -; serviços os mais diversos, desde o tradicional restaurante Jota’s até dentista, chaveiro e pitdog; é vizinho da praca Leo Lince, por um lado; e, de outro, é transversal ao colégio Externato São José. O bar sempre foi famoso pelas iguarias que serve, como o disco de carne, bolinho de arroz, figado com jiló, feijoada etc.
Não faz tanto tempo que o Breguella’s passou a abrigar a roda de samba que leva seu nome, além de outros grupos de choro, forró etc., se tornando um dos principais points (quando nao o único) da cidade. Bem como ganhou novos vizinhos, como o Bar do Meio, espaços de discotecagem, tabacaria, cerveja artesanal etc. As ruas fechadas que dividem os blocos da galeria e servem de estacionamento foram amplamente ocupadas e o público era/é variado, composto pela juventude de a a z, pela galera de meia idade, dentre artistas, empresários e políticos, e pelos velhos fregueses. Ou seja, um lugar antes morto foi revitalizado por um novo tipo de ocupação.
Qual não foi a surpresa ao chegar para esta última temporada goianiense e saber que, após denúncias, justo o Breguella’s, que sempre respeitou religiosamente o horário em que deixa o samba rolar, das 19h às 22h, o Ministério Público ajuizou ação que proíbe som no local. E aí o que restou? Se tínhamos 3 bares pra ir, Shiva, Zé Latinha (e complexo) e Breguella’s, agora temos dois — gente, claro que a gente também vai pra distribuidora, pra sinuca, mas cês entendem.
Dizem os jornais que as denuncias partiram do Grupo de Preservação da Região da Praça Leo Lynce — em torno da qual, curiosamente, não temos prédios residenciais. Assim, mesmo que o estado de festa se alastrasse por todos os becos da galeria,a que níveis chega essa poluição sonora, especificamente a do Breguella’s? Sabemos que o som se alastra e que a animação pós-samba também, mas é justo que todo o entorno “morra”?
Segundo a vereadora Aava Santiago, ela está com sua equipe mobilizada para acompanhar o caso e entrou com pedido para que o limite de decibéis, aos finais de semana, no local, passe de 55 para 85. O que já foi vetado pelo prefeito Rogério Cruz, o mesmo que não consegue resolver o impasse do licenciamento da coleta de lixo na cidade há anos.
Já eu, como não moradora da cidade, me pergunto se a AMMA (Agência Municipal do Meio Ambiente) fiscaliza com o mesmo rigor os bares que deixam os DVDs de sertanejo tocando tão alto que torna impossível estabelecer uma conversa em suas calçadas. Ou se também fiscaliza a estrutura acústica desses mesmos bares, cada dia maiores e piores, nos quais o som geral retumba numa massa sonora estridente. Por que o centro, digamos, histórico de Goiânia segue abandonado, com seus prédios, hotéis e teatros de arquitetura art decó fechados e caindo aos pedaços? Por que nao se criou um sistema efetivo de segurança por meio da administração pública do município para que o outro lado da rua 8 centro, chamada rua do lazer, seja ocupada não apenas pelo comércio decadente e por igrejas, mas por movimentos de cultura?
Goiânia só tem 90 anos. A capital, até o começo das décadas passadas, era desconhecida da maioria dos brasileiros que vivem fora da região centro-oeste. Além de ser associada a um lugar com ruas de terra, boi pastando, onças, cobras, comércio apenas de rua e tudo o mais que o preconceito deixasse falar alto à cabeça das pessoas. Foi um longo caminho até seu reconhecimento como uma das capitais que abriga os festivais mais legais de música independente, que tive o privilégio de ver se desenvolvendo e crescendo muito de tamanho; bem como o celeiro do sertanejo pós-Amigos (e nascedouro dos artistas com mais plays no Brasil).
Planejada para 50 mil pessoas, Goiânia tem hoje mais de 1,5 milhão de habitantes. Óbvio que os bairros que ficavam fora do projeto inicial de Atillio Corrêa Lima surgiram de forma menos ordenada, fruto de ocupações e especulações, na maioria dos casos. Os bairros imediatamente consequentes ao centro eram os mais valorizados. É o caso do setor oeste, onde fica o Breguella’s, na rua 134, que logo se transforma na rua 3 oeste. A região foi ocupada por uma elite, desde seus primórdios, como destaca a pesquisadora e professora de Arquitetura da PUC-GO, Anamaria Diniz, ao citar a construção do colégio e paróquia Ateneu Dom Bosco. O setor inclui também o bosque dos buritis, cujo projeto original mostra o quanto o urbanista já estava no futuro quando desenhou a cidade. Por último, mas não menos importante, o que dizer de uma cidade que deixa um clube como o Jockey, projetado por Paulo Mendes da Rocha e tombado patrimônio apodrecer?
Pois, essa digressão histórica foi apenas para sugerir que são as mesmas famílias que ocupam o bairro há décadas e seus comércios, que atendem a essas pessoas, que também parecem não conseguir compartilhar sua vizinhança com a diversidade e pluralidade cultural, artística e gastronômica. Afinal, não gostar de gente é um comportamento típico da classe média (alta), inclusive validada pela justiça e pelo poder executivo municipal.