Um beijo pra Ava Rocha

PoroAberto
4 min readJul 31, 2023

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Cantora estreia o show do disco NEKTAR

Ava Rocha em NEKTAR

Ava Rocha subiu ao palco do teatro Paulo Autran no domingo (30) pronta para desvelar as camadas literais, metafóricas e musicais de seu 4° disco, NEKTAR. Talvez esta seja sua estreia mais elaborada em termos de elementos cenográficos e de figurino, mas jamais em relação à sua performance. O show foi apenas a estreia — emocionada, alongada, com tudo e mais um pouco ao que podia por direito e viva até no gosto da maçã.

Desde a divulgação de seu segundo disco, Ava Patrya Yndia Yracema, que ganhou destaque no cenário da música independente, Ava Rocha vem demonstrando que domina a arte de estar sob os holofotes e faz do palco sua potência. Seus movimentos, sempre muito próprios, se dão num crescendo. Quando está parada, dá a partida para que nós nos desloquemos por causa de sua presença. Quando dança em passos calculados, invoca a força do corpo liberto. Quando requebra, rebola, se joga no chão, rola e tropeça, prepara o terreno para que, do alto da imaginação (nossa e dela), comecemos a voltar à Terra.

A faixa que abre o disco, “BABY, É TUDO UM SONHO”, composta por Negro Leo, de tom, ambientação e letra oníricos, coloriu o palco de azul, cor predominante na composição do show. Seu aspecto meio surreal vai dando lugar à mistura concreta que forma a salada rítmica de NEKTAR.

Nessa mistura de cores entra de um jeito tanto inédito na discografia da carioca o samba. Ele mesmo, ali conjugado aos pianos e efeitos que surfam em seus compassos, sem violão, nem cavaquinho, nem guitarra puxando a melodia (sorry, Paulinho). E se no single que anunciava o disco “LONGE LONGE DE MIM” esse samba vem sincopado na avenida, em “LUA ABSURDA” ele segue discretamente pela linha do groove.

É aqui, também, que toma forma a metáfora literal da água e do brilho de prata que estão no palco e nas canções. Ela abre (mais uma) passagem para a percepção de que não existe distanciamento entre o corpo do artista e aquilo que ele cria. Sem movimentos coreografados, Ava se molha, mete a mão, se lambuza de brilho — ainda que a performance se dê em torno de um jarro um tanto pequeno para a dimensão daquele espaço e sem que o efeito desejado de reflexo se voltasse à plateia, o brilho se desloca para a presença da artista.

Já os momentos mambembes fazem parte daquele todo e dão o tom da graça não só do espetáculo, mas da persona de Ava e de sua música — ora grave, ora debochada, como o contraste que aparece na escolha das músicas dos discos precedentes para costurar o novo roteiro, “Transeunte Coração”, “Joana Dark” e “Você Não Vai Passar”.

O néctar que já brotava do coração da deusa Lillith em Trança cresce em volume, se transmuta em uma corrente de águas fluidas, fonte e abrigo de vida — não só na terra, mas nos férteis rios diáfanos que correm pelas veias, pelo ventre. “Meu corpo planeta / É um copo de rios”. Seja empilhando copos, colocando-os sobre a cabeça ou se enrolando pelos tecidos feitos rios (ou trompas?), por todos os lados se encena o “Banho”: molhado, melado, de água e néctar, de prazer e libertação, da cachaça que conduz à ”felicidade ébria” a “marinheira do porto do céu”.

E no meio dessa grande celebração, nada mais apropriado do que invocar o copo de cerveja — tão recorrente em pagodes antigos e consagrados — cantado por Marília Mendonça, cujo rio de talento fez uma curva que aguou de novidade um cenário tão misógino, repetitivo e movido pelas forças obscuras do desenvolvimento, como é o sertanejo-agro, e tão cedo se recolheu.

NEKTAR é composto por 11 faixas, 10 das quais foram compostas pela própria Ava — que conta com a parceria de Saulo Duarte e Negro Leo em “DISFARCE” e Iara Renó em “BARCO NOS PÉS”. O disco foi produzido por Jonas Sá e Thiago Nassif e levado para o palco por Chicão e Vini Furquim teclados e synths, Gabriel Mayall no baixo, Charles Tixier na bateria e Yandara Pimentel na percussão.

Se o disco anterior de Ava Rocha era uma Trança de referências e sonoridades que, de certa forma, refletiam um momento tenso e sombrio do nosso contexto brasilis, nesse sua música ganha uma leveza que reluz e se espalha em beijos jogados no ar (para quem merece). Ao ouvi-lo e assistir seu show, a questão sobre ser popular ou experimental, se tem sertanejo, samba e pagode com synths dos mais loucos, percussão orgânica, linhas de baixo complexas que se combinam em contraste ou consonância com ruídos tanto faz, como tanto fez. É música, é brasileira, é canção, foi ouvida por um teatro cheio, o que mais importa?

Um beijo pra Ava

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