“Quarteto Negro” se reúne após 35 anos com Djalma Corrêa, Jorge Degas e Zezé Motta

PoroAberto
8 min readOct 14, 2022

Quarteto Negro, o reencontro

Djalma Corrêa e Jorge Degas, dois músicos brasileiros da maior importância, estão reunidos pela primeira vez depois de 35 anos. A última vez que se encontraram foi para a gravação do disco “Quarteto Negro”, junto ao maestro Paulo Moura e a cantora e atriz Zezé Motta, além dos shows de lançamento no Olympia, em Paris. A reunião atual se dá pela ocasião do convite para o show do Quarteto Negro no festival Sesc Jazz em São Paulo. Corrêa, Degas e Motta se juntam ao baiano Ivan Sacerdote, que entra no lugar do insubstituível Paulo Moura, falecido aos 77 anos, em 2010.

Aconteceu na quinta-feira (13) o reencontro inédito. O trio Corrêa, Degas e Sacerdote subiu ao palco pedindo a bênção de Paulo Moura. Para quem já conhecia Ivan Sacerdote, era de se esperar que ele não sentisse a importância de seu papel ali como peso, mas sim como honra. E, além da desenvoltura com a clarineta, o repertório e o corpo, foi o grande mestre de cerimônias da noite.

Djalma Corrêa, do alto de seus 79 anos, apresentou um set percussivo enxuto e diverso, expandindo o toque dos atabaques para a percussão de cordas metálicas, agogô e outros objetos. É exatamente isso que o público ansiava ver de um dos maiores nomes da percussão brasileira e teve no show, com altas doses de improviso e espontaneidade.

Já Jorge Degas pisou em palco brasileiro pela primeira vez desde a gravação do “Quarteto Negro”. Depois do lançamento do disco com show apenas em Paris, o músico radicou-se na Dinamarca e passou a tocar na Europa, tanto com parceiros europeus, como o alemão Andreas Weiser, mas também com músicos cubanos e americanos que passavam pelo continente. No show, o baixo de Degas dava o tom e estruturava os diálogos mais interessantes com a percussão e o sopro. Ainda na primeira música, a caixa reverberava o grave no tablado de madeira, o que, felizmente, logo foi consertado. Dele, estiveram presentes as composições “Sabiá” e “Brucutú”.

Zezé Motta entrou depois do trio de instrumentistas ter já derretido a plateia de emoção. Entrou radiante, como é próprio da expressão da atriz e cantora, cantando “Zumbi” — releitura da composição de Gilberto Gil e Wally Salomão. E foi, talvez, o momento mais importante para dar a tônica da reunião tanto do quarteto original, quanto do atual. Ao entoar o verso “a felicidade do negro é uma felicidade guerreira”, Zezé levantava os punhos fechados, representando o que estava dizendo e o porque de estar ali.

E foi Ivan Sacerdote, com sua boa gerência do palco e no diálogo com a plateia, que fez questão de lembrar que a música é um importante instrumento para se entender os contextos históricos. E mais: ao se falar e se tocar a música negra, é preciso entender que a diáspora não é uma condição, mas é um processo.

A síntese das palavras do mais novo da turma nos faz entender porque ele foi o eleito para ser o quarto elemento do grupo, além de sua extrema habilidade e da leveza que demonstrou ao entregar o repertório.

Claro que um show de Sesc é um show de Sesc e teve a plateia interagindo, pedindo interferência na equalização do som e improvisos de todos os tipos, o que é sempre uma diversão maior do que em qualquer teatro sisudo. Dona Lina só não contava que em outubro de 2022 nossas colunas estariam cansadas como se tivéssemos quase 200 anos para sentar em sua belas cadeiras.

Quarteto Negro, o disco

“Quarteto Negro” é uma peça única na música brasileira. A gravação original surgiu em meio às comemorações do centenário da abolição da escravatura no Brasil, em um contexto político de reabertura democrática do país após mais de 30 anos de uma ditadura militar sanguinária. Talvez por isso não tenha ganhado os palcos aqui após o álbum estar disponível nas prateleiras do mercado. No entanto, o trio Corrêa, Degas e Moura já costumava se apresentar entre Rio de Janeiro e São Paulo, promovendo uma grande escola musical, tipicamente afro brasileira, que reunia a pesquisa das matrizes sonoras africanas de tradições diversas, a música de improviso, a música erudita e a canção popular. Como?

São quatro músicos, quatro trajetórias e quatro históricos de referências. Moura, o mais velho, se tornou um dos maiores nomes da música instrumental brasileira, integrando rádios e orquestras (como a do Theatro Municipal do Rio de Janeiro), além de ter sido compositor, arranjador e maestro, trabalhando com nomes populares como Nelson Gonçalves, Maysa, Edison Machado, Baden Powell, Elis Regina, Wagner Tiso e Som Imaginário, dentre muitos outros. Degas foi seu aluno e o acompanhou pelos palcos. É baixista de discos clássicos como “Cavalo de Pau”, de Alceu Valença e, depois de extensa carreira no Brasil, radicou-se na Dinamarca ainda no final da década de 1980.

Já Djalma Corrêa, mineiro de Ouro Preto, começou na música tradicional mineira, em congadas e desfiles de Zé Pereira. Assumiu a bateria em casas de show de Belo Horizonte ainda menor de idade, mas a grande virada estaria por vir ao frequentar os Seminários Livres de Música da Universidade da Bahia, tendo como seus mestres Hans J. Koellreutter e Walter Smetak. E, claro, compôs a banda do primeiríssimo show que reuniu Caetano Veloso, Maria Bethânia, Gal Costa, Gilberto Gil e Tom Zé em Salvador, no Teatro Vila Velha, em 1964 — o “Nós, por exemplo…” — e ter gravado e feito turnês ao longo da vida com Gil, Bethânia e os Doces Bárbaros. Zezé Motta, que participou da icônica montagem de “Roda Viva”, peça de Chico Buarque encenada pelo Teatro Oficina, arrebanhou diversos prêmios atuando no cinema e na teledramaturgia nacional. Militante do Movimento Negro Unificado, lançou três discos em que a temática da negritude se sobressaía.

O “Quarteto Negro” não é um disco de jazz, nem de free jazz, nem apenas de improvisação ou canção popular. Sua principal característica é o desenvolvimento único das percepções individuais de quatro músicos negros de formações e vivências distintas em seu contato com as raízes da cultura africana no seu país. O disco foi lançado em 1987. Em 1974, Paulo Moura havia regido a orquestra que acompanhou Milton Nascimento em “Milagre dos Peixes — Ao Vivo”, nos Teatros Municipais de São Paulo e Rio de Janeiro. Djalma Corrêa vinha de uma de uma década de 1970 ainda mais engajada conceitual e esteticamente na música negra: o grupo Baiafro, criado em Salvador, em 1970. Trabalho que se concretizou com um extenso acervo de gravações de campo, preservado ainda hoje, e no lançamento de três discos: “Candomblé”, “Folclore do Brasil” e “Djalma Corrêa — Baiafro”.

É na ideia de Baiafro que está a sintonia do quarteto de Corrêa, Degas, Moura e Motta. Tomando o entendimento próprio de Djalma sobre Baiafro, fica clara a conexão criada para que o encontro entre eles resultasse em um disco de tamanha dimensão para a música brasileira. Mesmo que Paulo Moura se ativesse mais à ideia da forma programada da composição e seus arranjos, enquanto Djalma Corrêa pendia completamente para o improviso, todos eles apontavam para um mesmo sentido quanto à corporalidade e ao swing de suas criações. E partindo de alguns temas pré combinados e outros totalmente espontâneos foi que surgiu o disco, produzido pela socióloga francesa radicada no Brasil Janine Houard e lançado pela gravadora Kuarup.

Entrevista com Djalma Corrêa e Jorge Degas

Pérola: Como cada um do Quarteto se relacionava com a ideia e a filosofia do que você chamou de “Baiafro”?

Djalma Corrêa: Baiafro é um conceito que eu carrego. Eu procuro transmitir esse conceito para quem está tocando comigo. Porque Baiafro é aquela coisa que não é pré-concebida. Ela é pré-conceituada, o que é a música espontânea, a música livre, criativa, africana, com a música brasileira e a influência europeia. Esse conceito eu buscava passar sonoramente para eles e eles entendiam a proposta qual era.

Pérola: E o que é esse conceito?

Djalma Corrêa: Baiafro é quando você tem uma base rítmica e essa base rítmica contagia todo o resto. Contagia o corpo, contagia a mente, contagia toda a informação que virá através dessa forma de se expressar. É uma mescla, Bahia e África, essa junção que cria uma forma livre de criatividade. Em qualquer vertente que for, dá certo: seja a europeia, a africana ou a brasileira. Sempre vai haver uma sintonia harmônica, ou melódica ou rítmica. Essa era a grande vantagem, o grande ponto de partida de Baiafro. A sintonia com o que estava rolando no momento. O que ia ser proposto, não o que estava sendo proposto, era o que ia decorrer.

Pérola: Por vocês já se apresentarem juntos, em trio, sem a Zezé Motta, quando entraram no estúdio já havia uma sintonia na criação improvisada?

Djalma Corrêa: A tônica do trio era exatamente esse lado do improviso. Tanto que tem um tema que foi criado na hora. “Brucutú” foi criado na hora. A coisa que eu sempre gostei e cultivei dentro da música é a espontaneidade. Estar desamarrado. O que a gente tinha mais era conceitos. A gente falava muito. Conceituava mais do que tocava. Ou não. E deixava a coisa acontecer. E sempre acontecia da melhor maneira, exatamente pela abertura de Degas e uma pseudo-abertura de Paulo, porque Paulo não era muito chegado a improviso, não. Paulo gostava das coisas mais amarradinhas e eu arrebentava os nós. Esse lado de improviso era um elemento fortíssimo no nosso idioma, corria frouxo. E sempre o inusitado. A gente não sabia como começava e como acabava.

Jorge Degas: Mas sempre começava e sempre acabava.

Pérola: Mas ao mesmo tempo tem o “Corta-Jaca” da Chiquinha Gonzaga, veio do Paulo isso?

Djalma: Claro. Tinha uns temas amarrados, como o “Corta Jaca” e “Festa da Xica”.

Degas: Mas, mesmo o “Corta Jaca”, no meio da música eu saio tocando totalmente fora. E o Paulo entra e faz umas coisas no saxofone, sozinho, depois eu entro, faço um solinho. E, devagarinho, a gente vai voltando ao “Corta-Jaca”. Era muita criatividade.

Djalma Corrêa: Uma das coisas pra mim, muito importante nessa coisa de música espontânea, é exatamente essa entrega e essa atenção. Ou seja: um ouvir o outro. Ouvir o outro é fundamental, porque é aí que surge o diálogo, aí que surge a conversa. Você ouve detalhes do que o outro está fazendo. E isso, com a gente, acontecia muito. A sutileza de Paulo Moura, a antena ligada de Degas. E eu correndo atrás. A gente não sabia muito bem onde ia dar. Era uma coisa de inventividade muito grande. O swing de Degas, que sempre foi uma coisa que eu gostava muito, aquela coisa bendita dele e que ele misturava com efeito de voz, e aí a minha percussão andava solta. E no final sempre deu certo.

Pérola: E como se deu a escolha do Ivan Sacerdote para entrar no lugar de Paulo Moura?

Djalma Corrêa: Ivan tem uma sonoridade muito semelhante à de Paulo e uma sensibilidade muito semelhante à de Paulo. Ele já tinha ouvido antes o disco e entendeu o que era. Então ele entrou de galocha.

Pérola: É bom tocar com uma geração mais nova?

Djalma Corrêa: É sempre uma nova experiência. É sempre bom e um tempero novo naquele prato.

O show “Quarteto Negro” acontece na sexta-feira (14) no teatro do Sesc Pompeia pela segunda noite seguida e segue para a programação do festival Sesc Jazz no interior, em Piracicaba.

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