#poroabertoindica

Dibuk — “Casa Zero”

PoroAberto
6 min readOct 2, 2020

No último mês de julho, recebi um e-mail com o link para o disco “Casa Zero”, do projeto Dibuk. E foi a própria autora do projeto que se apresentou: “Sou Lea Taragona, cantautora e artista sonora brasileira radicada em Berlim, e escrevo porque acabo de lançar meu primeiro álbum solo”.

Eu fico brava comigo mesma quando não estou sabendo de um projeto legal que esteja acontecendo ou lançando discos. Mas é preciso se dar um desconto porque a vida ainda corre aqui fora e aqui dentro, nessa terra de ninguém, vivemos um bombardeio de conteúdo. Não tem como ficar ligada em tudo mesmo. Por isso o e-mail da Lea veio como um presente, porque eu me interessei por ela já na sua auto descrição. Afinal, a questão central do meu projeto de pesquisa (pessoal e do Poro Aberto) é justamente a interseção entre a canção, a arte sonora e a experimentação.

No e-mail, a Lea descreveu o projeto da seguinte maneira: “É um projeto autoral de canções experimentais, com violão, voz, paisagens sonoras e elementos eletrônicos, tudo gravado em casa por mim nos últimos dois anos. É uma investigação sobre os pontos de encontro entre canção brasileira, música ambiente e experimental”. Para arrebanhar o leitor e convidá-lo a ir à página do Bandcamp, a descrição é perfeita. Mas a experiência da escuta do disco nos revela inúmeras outras coisas. E uma delas é que a voz da Lea é um alento, que vai desenhando de diferentes maneiras sua poesia cuidadosa ao longo das faixas.

“Casa Zero” é um disco para ser ouvido fora do tempo corrido da vida cotidiana. Tudo nele inspira introspecção, tanto as letras, como as paisagens sonoras criadas. Nessas, os sons não se sobrepõem de forma massiva. Eles são cuidadosamente pensados e encadeados.

Lea é quem toca em todas as faixas e soma-se à ela Victor Negri na co-produção musical e nas faixas “Terra Plana”, “Raio” e “Rio”. A capa é um desenho de Waldomiro Mugrelise sobre foto da própria Lea. Todas as letras também são de autoria dela, exceto “luzia do brasil”, poema de Ricardo Domeneck.

Aproveitei a oportunidade do e-mail para conversar com Lea e saber um pouco mais sobre quem ela é, de onde surgiu a ideia do projeto, sobre a concepção do disco e tudo mais. Nesse meio tempo, ela até mudou de país, agora reside no Porto.

Poro Aberto: Vamos começar do começo? Seu nome é Lea Taragona e o nome do projeto é Dibuk. Fala um pouco da sua trajetória e relação com a música e a poesia.

Lea Taragona: Ao meu redor o canto sempre esteve presente, e nas festas judaicas, regadas a muito vinho, se tornava veículo de expressão e comunhão, jorravam lágrimas e risadas junto das melodias em uma língua que eu não entendia, e tudo se fazia sincero e vivo. Essas experiências marcaram de forma iniciática minha relação com a voz e com a música. Além disso, em casa ouvia-se de tudo, e através do som eu sentia que conseguia deixar a claustrofobia do apartamento em São Paulo rumo a lugares desconhecidos. A música tornou-se então uma maneira de saber o mundo. Com 8 anos comecei as aulas de canto, e depois aos 10 comecei a aprender o violão. Foram muitos anos, porém, até que poesia e música pudessem se conectar. Era uma criança muito calada, e achava difícil dizer e participar de conversas cotidianas. A poesia surgiu como uma língua possível.

Poro Aberto: Como nasceu o projeto do disco e o que é Dibuk?

Lea Taragona: Dibuk é um fantasma que se apodera dos corpos dos vivos pra realizar algo. É também o tema de uma peça de teatro de S. Ansky, que encontrei certo dia na casa de meus avós, cuja protagonista é minha xará. Depois de ler fiquei imaginando como seria ser tomada por outras vozes, outras identidades, como isso transformaria meu corpo, minha forma de dizer, de cantar e tocar. Era uma ideia que dialogava com a da criação/performance como espaço liminal, do devir, do transe. Desses fantasmas nasceram, ao longo de alguns anos, as composições do disco. Gosto do formato álbum porque cria narrativas, dá sentido pro conjunto, e também traz a ideia de que algo foi finalizado.

Curiosamente, “Casa Zero” já tinha esse nome antes da pandemia. Em Berlim conheci gente de toda a parte, alguns refugiados, cada qual com um conceito muito particular de casa. Era um tema que me rondava muito na condição de latino-americana na tal da Europa, além de ter tido que mudar ao menos oito vezes em três anos por não conseguir um contrato duradouro. Pensava muito no Brasil, que ardia e arde ainda. Tive que encontrar a casa em um lugar metafórico, me segurar em alguma parede, em algum chão. O álbum cumpriu esse papel. Mas só pude concretizar o projeto com um empurrãozinho daqueles que tenho por perto — principalmente do querido amigo Wladimir Vaz, da editora Urutau, que me trouxe a ideia de lançarmos um livro junto do disco.

Não sou escritora, e de início não queria ocupar esse espaço do papel, mas ele me convenceu, falou-me bonito sobre a vida da música através das letras escritas, de sua presença quase fantasmagórica (Dibuk?), e fomos adiante. Somaram-se ao projeto Victor Negri, co-produtor do disco, e Waldomiro Mugrelise, com seus desenhos que transbordam. Agora o disco tá solto, e o livro na proa, a lançar-se!

Poro Aberto: Você fala na descrição do disco que sempre quis fazer canções e o interessante do disco é que ele cutuca vários dos limites da canção como a gente conhece, né? Sobretudo nos sons de cada faixa, que exploram ruídos e paisagens sonoras. Mas você também é artista sonora, então queria saber como você vê (ou se vê) as fronteiras e entrelaçamentos entre a poesia, a canção e a arte sonora.

Lea Taragona: Pois é, sou astigmata né, e pra mim as fronteiras são sempre borrões. Quando ouvi a expressão “arte sonora” pela primeira vez, me trouxe uma ideia mais aberta, mais mutável, do fazer som, do que a “música experimental”. Os nomes sempre carregam consigo negações. Eu, que alguns dias nem sei dizer do meu gênero, não sei dizer de gênero musical. Tem dia que faço canção, outro que dou um grito no microfone, noutros prefiro deixar um objeto falar. Tudo depende do que quer ser dito, em que duração, em que corpo. Aprendi a ouvir a multiplicidade dentro e fora de mim, somos ecossistemas, temos muitas vozes, e em nossas vozes contidas também as vozes dos outros. Mas a canção sempre me tocou mais fundo. Essa transa entre palavra e som, tão antiga quanto a própria linguagem, produz qualquer outra coisa que não sei explicar. Sempre me soou como magia, como cheia de poder. Entendo canção como qualquer reunião entre letra e som, mesmo que feita por uma máquina, como é no “outro tronco oco”. A palavra que adentra como vibração, não como alfabeto, e contém em si um corpo.

Poro Aberto: Tem uma única letra que não é sua no disco, que é do poeta Ricardo Domeneck. Por que você escolheu logo um poema dele? E vocês dois atualmente moram em Berlim, né? Vocês se conhecem? Qual sua relação com Berlim?

Lea Taragona: Acompanho o trabalho do Ricardo já há bastante tempo, e a revista Modo de Usar & Co., editada por ele, Marília Garcia, Angélica Freitas e Fabiano Calixto, foi minha companheira durante anos. Em 2018, pouco antes das eleições, houve o incêndio no Museu Nacional, e Ricardo pariu esse poema arrebatador, que é “luzia do brasil”. No momento em que li soube que queria fazer algo com ele. Escrevi pro Ricardo, e, pra minha enorme felicidade, ele topou. Coincidentemente eu havia acabado de me mudar pra Berlim, e então pudemos nos conhecer pessoalmente. Berlim é uma ilha, que se pensa e é vista como centro do mundo, mas é líquida. Foi minha casa por três anos. Agora vim parar em outras paragens, no Porto, pra estudar o rádio.

--

--

No responses yet