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Torquatália — Lia Lordelo
Na última sexta-feira (5/6), saiu o disco Torquatália, de Lia Lordelo. O disco é fruto de um projeto que foi apresentado diversas vezes e maturado até virar um disco. A princípio, qualquer coisa lançada hoje que evoque a Tropicália deixa o crítico com os dois pés atrás — esta que vos fala sobretudo, pois a indignação/curiosidade com o tema virou até o assunto da minha dissertação de mestrado.
No entanto, Torquatália reúne os principais músicos, instrumentistas e compositores contemporâneos da cidade de Salvador. E traz como figura de proa, nos vocais, Lia Lordelo, psicóloga e professora universitária, que é uma figura ligada às artes do corpo e uma voz conhecida na cidade — como esquecer de sua participação, por exemplo, no segundo disco de Ronei Jorge e os Ladrões de Bicicleta cantando “Tão Forte”?
Como o próprio nome do disco diz, o projeto selecionou músicas cujas letras foram compostas pelo jornalista e poeta piauiense Torquato Neto. São elas: “Todo dia é dia D”; “Mamãe coragem”; “Marginália II” e “Três da madrugada”.
“Todo dia é dia D” e “Três da Madrugada” são parcerias com o pernambucano Carlos Pinto, que gravou a primeira em um compacto de 1974 pela Continental, quando de sua ida pro Rio de Janeiro, depois de uma temporada morando em Salvador. Foi também gravada por Gilberto Gil, em formato voz e violão e está no disco Cidade do Salvador. A segunda eternizou-se na voz de Gal Costa. “Mamãe Coragem” consta no disco manifesto Tropicalia ou Panis et Circencis (1968), também cantada por Gal Costa nesse disco. E Marginália II é uma parceria com Gilberto Gil, gravada no disco homônimo do cantor (ou também conhecido como Frevo Rasgado), de 1968.
É inegável a importância de todas as quatro faixas para a música brasileira da década de 1960 e para a trajetória de Torquato Neto. E no projeto Torquatália, apesar do risco de mexer em canções canonizadas, o que vemos é um trabalho cuidadoso de arranjo e uma banda inusitada, com fagote, synths, programações, viola caipira, trompete preparado e etc. Segue um breve papo que bati com Lia Lordelo e EdBrass. Como bônus, no final da entrevista de hoje, deixo recomendações de livros sobre o tema.
Poro Aberto: Como e quando começou o projeto Torquatalia?
Lia Lordelo: O Torquatália começou de um encontro meu com Edbrass. Eu já tinha dois projetos musicais anteriores e estava pensando num terceiro. Ed fez uma edição de outro projeto dele o Low-Fi Processos Criativos, em que homenageava Torquato Neto, e me chamou para fazer parte da banda, cantando duas músicas. Daí, quando o procurei, ele sugeriu que desenvolvêssemos um show a partir das músicas escritas por Torquato. Aproveitamos a oportunidade de um convite do III Festival de Arte Eletrônica Paisagem Sonora, e estreamos o show nesse evento, em 2017, na cidade de Cachoeira.
PA: Como se deu a escolha das quatro faixas em questão?
Lia Lordelo: Começamos a partir do show, que tinha 9 músicas (foi pensando para ser um show mais curto, pois integrava uma noite de festival, dividida com outras duas cantoras). Acredito que são as músicas mais fortes. Escolhemos a que era uma espécie de hit, “Mamãe Coragem”, parceria com Caetano Veloso, e que saiu antes, como um single. Tem uma parceria com Gilberto Gil, “Marginália II”, que fala sobre nossa condição histórica e política e ressoa assustadoramente atual. As outras duas são músicas fenomenais e carregadas de emoção — “Todo dia é dia D” e “Três da madrugada” — e curiosamente são parcerias com um compositor menos conhecido no Brasil, o Carlos Pinto. Escolher essas duas canções foi um modo de atualizar esses parceiros de Torquato além das conhecidas parcerias com Caetano e Gil.
PA: Como foram pensados os arranjos para as versões produzidas? Elas parecem que tem uma unidade no todo do disco, no que diz respeito a um estilo a ser apresentado, ou não? Por exemplo, na audição fiquei pensando que a versão de “Todo dia é dia D” está bem mais próxima da de Carlos Pinto do que a de Gil.
EdBrass: Quando Lia me convidou para fazer a direção artística do seu novo show e concordamos em trabalhar as parcerias musicais do Torquato, a pesquisa já estava bem adiantada. Vínhamos da experiência com a temporada “Low Fi Revisita Torquato Neto, Wally Salomão e José Agrippino de Paula”, e Lia e Heitor Dantas faziam parte da “banda base”, junto comigo, Tuzé de Abreu e Greice Carvalho.
Para o show Torquatália, a idéia inicial era buscar uma abordagem musical “avant Pop” que, deslocasse a imagem do Torquato “suicida” e trouxesse á tona os elementos de transgressão e esse lirismo urgente presentes nas canções escolhidas para compor o repertório. O passo seguinte foi convidar a Laia Gaiatta, power trio com uma formação bem heterodoxa: bateria, fagote e guitarra, aproveitando Heitor para a direção musical.
Começamos os ensaios, muito laboratório e tudo foi ficando bem promissor e estimulante, tanto que dois meses depois já estávamos levando essa experiência para uma série de apresentações em teatros com um super trampo de luz, figurino, equipe, etc. Desse rolê nasceu a vontade de registrar essas versões em um álbum, o EP “Torquatália” é o primeiro passo nesse caminho.
Quanto aos arranjos, buscamos não ouvir muito as gravações originais e explorar os elementos que essa formação Lia, Laia e eu possibilitava, sempre pensando na dinâmica do show. “Marginália II” estava no bloco “funky”, “DIA D” era a abertura, depois de um climão eletroacústico, “Mamãe Coragem” entravam no meio do show. Acho que essa energia do “ao vivo” foi captada e faz muito sentido no EP, como uma iniciação ao Torquato para as novas gerações. Acho que com a sua produção em jornalismo, artes gráficas, cinema, poesia e canção, Torquato representou o pioneirismo do artista contemporâneo, aquele que se divide em múltiplas frentes, botando a mão na massa (literalmente) e acena para uma prática -crítica ao modelo autoritário e neoliberal que assola o Brasil de hoje.
PA: Lia Lordelo está ligada à música e às artes há um tempo, conhecida no contexto em Salvador, mas ela também leva uma carreira acadêmica na área da psicologia. Como é levar essa trajetória dupla?
Lia Lordelo: De fato, sempre estive ligada ao mundo das artes e ao mundo da Psicologia, em especial no contexto universitário. Com o passar do tempo, comecei a enxergar esses mundos bem conectados. Mesmo nas minhas práticas artísticas, tudo passa por pensamento, por pesquisa, por algum conceito que me motiva e orienta. Hoje, sou professora na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. Entendo que meu trabalho na universidade e minhas pesquisas são um catalisador das questões que me atravessam como artista.
Livros que indico sobre o tema
A biografia de Torquato Neto (2013), Toninho Vaz
Torquato Neto: Essencial (2017)
Eu, brasileiro, confesso, minha culpa meu pecado (2010), Fred Coelho
Torquatalia: geleia geral (2004), Paulo Roberto Pires (org.)