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Oliveira — “Canções não” e Revista Outros Críticos

PoroAberto
8 min readSep 25, 2020

Conheci Carlos Gomes Oliveira há 5 anos no Rio de Janeiro, no lançamento do volume 8 da revista Outros Críticos, que é uma das poucas publicações que ainda aposta na atividade da crítica enquanto ofício e no seu resultado prático no meio. Além de debate com Fred Coelho e Paulo da Costa, mediado pelo próprio Carlos, tivemos uma apresentação de Hugo Linns e Cadu Tenório. Voltei a me encontrar com Carlos já em São Paulo, na ocasião do lançamento de seu livro “Canções iluminadas de sol”, fruto de sua dissertação de mestrado sobre as canções do movimento tropicalista e do Manguebeat. No encontro da Livraria da Vila, houve um debate com Siba, Romulo Fróes e Stela Campos.

Em agosto do ano passado, Carlos lançou seu primeiro disco, intitulado “Canções Não”, sob o nome Oliveira, que é também seu segundo sobrenome. Ao disco está vinculado um livro com as poesias cerne das músicas e o show (que acabou não chegando por aqui, no sudeste, antes da pandemia), formando uma obra complexa.

Agora, pouco mais de um ano após o lançamento do disco, Oliveira soltou o primeiro clipe do álbum, da música “Cidad”, que mostra uma Recife em preto e branco. Um traço presente em todo o disco é o tom melancólico dos arranjos e da voz do compositor, assim como os temas abordados por ele. O disco conta com participação do escritor, cineasta e professor Jomard Muniz de Britto — que assinou os manifestos tropicalistas publicados no Jornal do Commercio, Recife, em 1968 -, além de Nathalia Queiroz e Philippe Wollney. Os arranjos e a viola são assinadas pelo mesmo Hugo Linns que havíamos visto na Audio Rebel, o baixo é de Rogê Victor e Oliveira apresenta sua voz, seu violão de aço e composições.

Bati um papo com Oliveira sobre a concepção e mensagem do clipe de “Cidad”, mas também sobre o uso que ele tem feito do nome e de seus sobrenomes em seus projetos, sobre a Outros Críticos e sobre sua atual pesquisa de doutorado.

Poro Aberto: A minha primeira pergunta é: por que você desvinculou o seu nome de autor, dos livros e pesquisas, que é seu nome próprio, do nome do cantor e compositor, que também é parte do seu nome?

Oliveira: A minha trajetória é um pouco esquisita, pois eu comecei compondo canções, mas por vários motivos, não consegui transformar essa produção em discos. Nem ao menos participar de bandas (apesar de algumas tentativas no início dos anos 2000 em Recife) ou mesmo circular entre outros músicos com essas canções ou com as letras que eu fazia. E, por outro lado, o trabalho com crítica musical, sobretudo entrevistas, ganhou muita força, justamente apoiada pela minha entrada no curso de Letras, em 2008, que coincide com o início dos Outros Críticos, idealizado por mim e pela designer e pesquisadora Fernanda Maia. Agora, mesmo nos Outros Críticos, eu já não assinava com o meu nome. Nós criamos heterônimos (muito influenciados por Fernando Pessoa) que assinavam as entrevistas, edição e tudo o mais que produzimos nos Outros Críticos. Por muitos anos, como toda a nossa produção era na internet nessa época, as pessoas apenas conheciam os personagens; o que eu assinava com maior frequência era Júlio Rennó, que era o editor do site. Então, já de início, Rennó era a minha persona nos Outros Críticos, e Carlos Gomes era a minha assinatura como poeta, que é como eu finalmente comecei a circular artisticamente, mas sem nunca deixar as canções de lado. Digo tudo isso, porque nessa época eu já pensava os nomes como poéticas, como partes do processo de criação dos trabalhos. O nome Carlos Gomes começou a substituir Júlio Rennó porque a gente começou a querer participar de editais culturais e a também fazer eventos públicos e achávamos que a parte burocrática que envolvia isso tudo poderia ser prejudicada na hora de comprovar trabalhos etc. Com Oliveira acontece coisa semelhante. Nesse disco/livro “Canções não” há um imbricamento entre esses dois lugares, essas duas vozes, o da poesia e o da canção, mas é justamente esse cruzamento que está no cerne desse trabalho. A partir do próximo disco acredito que Oliveira deva ganhar uma autonomia maior em relação aos meus trabalhos com poesia, e possa aos pouquinhos encontrar uma voz própria. Além do mais, deixo em paz o maestro Antônio Carlos Gomes, ou melhor, ele me deixa em paz. Risos. Já que desde a infância quando alguém ouvia o meu nome sempre associava a ele, me perguntando sobre O guarani, se ele era músico ou escritor, coisas do tipo.

Poro Aberto: É estranho ver uma cidade tão colorida e de céu e mar azul como Recife em preto e branco, como no clipe de “Cidad” que você acaba de lançar. As imagens captam prédios novos e antigos, todos mais ou menos em ruínas, ruas vazias, o horizonte, e também flagra um arrastão. Fala um pouco da concepção da canção e do clipe.

Oliveira: Esse estranhamento que você fala é justamente o que procurávamos para esse clipe. O disco/livro “Canções não” é todo iluminado por um “sol escuro”. Essa estética não foi pensada de início, ela foi nascendo à medida que os poemas e canções surgiam. As imagens do vídeo não foram feitas originalmente para o clipe. Eu as conhecia porque Hugo Coutinho, diretor do vídeo, tinha feito um filme curto para a revista Outros Críticos, há muitos anos, que discutia sobre “ruínas”; então, ao planejar um clipe sobre a canção “cidad”, que é a faixa que encerra o disco, me lembrei logo dessas imagens. Convidei Hugo a montar esse clipe a partir daquelas imagens. A montagem dele já foi toda influenciada pela canção, assim como o preto-e-branco foi uma decisão que surgiu quando ele já começava a montar o vídeo. As imagens são de João Lucas, integrante junto com Hugo, do coletivo Jacaré Vídeo, e com essas imagens pudemos ter um outro retrato da cidade do Recife. A canção “cidad” é uma espécie de recorte de vários poemas e temas presentes em todo o livro e nas outras canções do disco, como desterro, ruína, o corpo como casa; e a ideia central da canção está na forma como a palavra “cidade” vai se fragmentando, se despedaçando, e forma esse duplo “cidad” “se dá”.

Poro Aberto: Na verdade, seu disco/livro também é todo pautado pelos tons de cinza, os aspectos gráficos das linhas citadinas e os recantos escuros da existência. O que significam esses temas pra você?

Oliveira: Esse trabalho começou a nascer em mim quando vi uma série de reportagens sobre desapropriações por conta de obras para a Copa do Mundo e, posteriormente, as Olimpíadas no Brasil. Toda a injustiça gerada por essas desapropriações, pelo desterramento absurdo de famílias que moravam há muitos anos em suas casas, e que de uma hora para a outra se viram sem chão, sem direito à moradia digna, enfim. A imagem de um trator da marca “komatsu” derrubando casas me fez escrever um poema chamado “uma máquina”, que tem os versos “komatsu é uma máquina/ komatsu é uma grande máquina amarela/ komatsu desterrou famílias…”. E partir desse poema logo pus música nele e comecei a trabalhar num registro vocal entre a fala e o canto. Então, a terra, a máquina, o pó, a violência, são todos elementos que fizeram parte desse trabalho, por isso, acabamos criando com o livro, no princípio, na diagramação de Fernanda Maia e na fotografia de Eric Gomes, ter espaços mais vazios, tons mais escuros. Era um pouco refletir a poética dos poemas no corpo do livro e no som do disco.

Poro Aberto: Como foi seu encontro com Hugo Linns pra fazer esse disco, ele que é um músico que transita entre a tradição da viola e da experimentação? Imagino que vocês tenham uma ligação há mais tempo, porque lembro do evento de lançamento de uma edição da Outros críticos no Rio de Janeiro com vocês dois.

Oliveira: Eu conheci a música de Hugo Linns no período em que eu editava a revista Outros Críticos, e numa das edições o convidamos para ser um dos entrevistados principais, que resultaria na gravação de músicas e na produção de um show, que ele acabou fazendo com DJ Dolores. Posteriormente, ao fazermos um lançamento de revista na Audio Rebel, no Rio de Janeiro, achamos que a música dele poderia dialogar com o trabalho de Cadu Tenório, então fizemos o convite para ele se apresentar lá. Mas tudo isso eu fiz como integrante dos Outros Críticos. Até àquela altura (2015), Hugo nem sabia que eu compunha ou tinha pretensões de gravar um disco. Porque sempre tive o cuidado de separar os trabalhos, se você entrar no site dos Outros Críticos ou ler nossas revistas, por exemplo, não verá nenhuma postagem ou reportagem que mencione Oliveira. O livro “Canções não” começou a tomar forma e só depois de um tempo é que eu comecei a musicar alguns poemas dele, e aí comecei a pensar em fazer um disco, mas não houve um planejamento específico para o disco, ele acabou nascendo dentro do processo de criação do livro. É tanto, que outros músicos fizeram parte dele nas primeiras tentativas de construção do disco, mas acabou não indo pra frente. Até o dia em que eu decidi convidar Hugo para produzir o disco e ter a sua viola para dialogar com a minha voz e violão. A ideia era que a viola dinâmica fosse essa cidade, esse geocorpo, com seus sons construídos a partir de pedais de efeito, e a minha voz e violão fosse o poeta que canta a cidade, mas tudo muito em diálogo, tentando fazer dessas vozes um único corpo-voz.

Poro Aberto: Você lançou o livro “Canções Iluminadas de Sol” sobre sua pesquisa de mestrado em torno das canções da Tropicália e do Mangue Beat. E agora você está no doutorado (ou já terminou?) e sobre o que é sua pesquisa atual?

Oliveira: Eu estou no segundo ano do doutorado em Letras na UFPE, ainda cursando algumas disciplinas. A minha pesquisa atual é sobre uma noção de matéria-canção presente na obra de Nuno Ramos; como algo que permeia a sua obra, nas mais diversas áreas e linguagens em que ele atua, seja nos livros, performances, exposições e nos discos em que é compositor, sobretudo nas parcerias com Romulo Fróes e Clima. Com essa matéria-canção eu quero refletir como a obra de Nuno utiliza essa matéria num desdobramento entre a criação artística e a crítica cultural. Esse movimento de criação e crítica dessa matéria-canção pode enriquecer o próprio percurso da crítica cultural atual e torná-la, também movimento, invenção. Com o desmantelamento da Educação no Brasil, nem sonhei ter bolsa ou poder circular em congressos, como cheguei a fazer no mestrado, de 2014–2016, mas pretendo no próximo ano poder passar um tempo em São Paulo, para conhecer mais de perto a parte plástica, visual do trabalho de Nuno, bem como poder entrevistá-lo mais profundamente, assim como os seus parceiros em música.

Poro Aberto: Queria aproveitar a entrevista para perguntar sobre a Outros Críticos, o que tem rolado por aí?

A Outros Críticos está produzindo a revista em formato virtual, esse é o nosso principal trabalho atualmente. Até o final do ano lançaremos mais duas edições. Com a pandemia tudo ficou mais difícil, pois temos feito muitas coisas presencialmente, muito mais do que na internet, principalmente com a nossa produção de livros, o nosso cuidado com o impresso. Mas estamos tentando manter a produção nesse momento, com outras formas de continuar produzindo apenas virtualmente. Uma coisa boa que vai rolar em breve também, e que conto primeiro aqui pra você, é que lançaremos virtualmente uma edição ampliada do livro “Ninguém é Perfeito e a Vida é Assim: a música Brega em Pernambuco”, escrito pelo professor Thiago Soares, e lançada pelos Outros Críticos em 2017. O livro chegou a ser indicado no Prêmio Jabuti de Economia Criativa. Como temos menos de 10 cópias da edição impressa, ainda à venda, resolvemos liberar o PDF do livro gratuitamente, já que se trata de um projeto que foi incentivado pelo Funcultura-PE, e como acontece com nossas publicações, sempre que elas esgotam nós divulgamos o PDF. Mas dessa vez teremos uma edição ampliada do livro, com um texto novo de Thiago incluído na edição.

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