Os enigmas sonoros de Hermeto Pascoal em cores, objetos e imagens
A exposição “Ars Sonora Hermeto Pascoal” revela o universo criativo do músico alagoano com suas inúmeras partituras e instrumentos aleatórios, mostrando a criatividade e capacidade de improvisação do Bruxo
Olhar as inúmeras partituras que se desprendem de Hermeto Pascoal e vão se desenhando pelas superfícies que estiverem disponíveis por onde o músico passa parece, quase sempre ou sempre, um enigma. Nem todo mundo que gosta de música sabe ler a notação musical. Encontrar quem tenha tanto som para criar dentro de sua cabeça o tempo todo ou que veja som em, literalmente, tudo que está ao redor é mais raro ainda. Por isso ele ganhou o apelido de Bruxo.
Na exposição “Ars Sonora Hermeto Pascoal” encontramos um pouco desse universo em um circuito expositivo que vai desvendando a graça, a potência e a realidade do som que está em constante criação na existência do músico. Em um primeiro momento, encontramos uma vitrine com os mais diversos objetos com as partituras: tênis, vasilhames de isopor com o nome dos restaurantes a que pertenceram, raquetes, baldes de metal etc. De outro lado, na parede, diferentes chapéus — tão característicos do alagoano quanto seu fenótipo albino, o cabelo comprido e a barba imensa.
Alguns dos instrumentos que Hermeto utiliza em suas apresentações e discos estão dispostos de modo suspenso, que acentua o lado lúdico criação, mas também a presença do improviso, da experimentação e do inesperado. Vemos um apito e uma flauta ao lado de um balde ou uma máquina de costura, o clássico porquinho de plástico, berrante e tubos de aço, dentre outros. Logo adiante, sacolas retornáveis tornadas partituras formam uma espécie de móbile.
De outro lado da pequena lateral do 2º andar do Sesc Bom Retiro, a pura expressão de uma música que não fica contida: uma revista de avião inteiramente tornada obra, bem como um catálogo do Itaú Cultural. E aí vem o contraste da criação a partir do improviso e da ocasião: as telas-partituras, com assinatura e alguma pequena alegoria, bem como desenhos ultracoloridos que mesclam formas abstratas e as notações sonoras — amarradas pela lembrança das ideias de Kandinsky e Schoenberg pelo curador. É aqui que as peças do cubo mágico se misturam e se organizam.
O curador Adolfo Montejo Navas se desdobra em seus textos para dar conta do pensamento musical múltiplo de Hermeto Pascoal, que vai muito além da música em si, aquela que se concretiza em ondas no espaço. A sonoridade do artista é tangenciada e se expressa, também, em uma estética poética, plástica, performativa e corpo-sensorial. Navas se utiliza da ideia de “cartografia” para lidar com as fronteiras que são borradas pelo artista — se olharmos para a obra e a expressão artística como uma linguagem pré-definida.
Seria confortável associar o trabalho de Hermeto Pascoal, materializado em objetos aleatórios e cotidianos, como uma expressão dadaísta. Mas não me parece que seja o caso de uma arte que se pretende menos provocadora pelo gesto do que pela conexão entre a estética e a interioridade do artista. Que é o que os vídeos que encerram o percurso expositivo fazem o espectador sentir.
Nas cenas do documentário “Hermeto Pascoal — Atos de criação”, de Marília Alvim, mergulhamos no processo da mente complexa e multissensorial do músico, que faz parecer que sua música é, na verdade, algo muito simples (quando a ouvimos). O filme acompanha o processo de criação intuitivo de Hermeto de uma trilha para o gigante painel “Eu vi o mundo… Ele começava no Recife”, de Cícero dias, de 1929. Por fim, vídeos de performances de Hermeto com seu próprio corpo nos sugam para seu universo franco: há uma superfície e suas texturas, no caso, o próprio corpo. Dali, timbres, alturas, escalas, ritmos e quase melodias são criadas. Não parece básico o suficiente?
Destaco ainda o catálogo da exposição, com textos mais longos do curador, parte de um compêndio de Hermetologia que contém, originalmente, 88 verbetes, texto de Sidney Molina e fotos das peças expostas .
#hermetopascoal