Os 30 anos do É o Tchan!

PoroAberto
6 min readAug 23, 2023

--

O cerne do sucesso entre a tradição e a nacionalização de uma suposta identidade

É o Tchan! 30 anos

O É o Tchan fez poucos shows, até agora, para comemorar os 30 anos de seu surgimento. Em meio a uma onda nostálgica que domina o mercado cultural — Barbie, turnê Sandy & Junior, série Xitãozinho e Xororó etc. — e que capta, exatamente, o público que foi criança ou adolescente nos anos 1990 e hoje forma a base do consumo, o evento pode ser lido como mais uma manifestação da tendência. E a fanbase que esteve presente no Komplexo Tempo, no bairro da Mooca, na última sexta-feira (18) em São Paulo demonstrava, em partes, que estava ligada na onda de retorno ao passado: muitos grupos de amigos prepararam figurino dos clássicos É o Tchan na Selva; no Egito; e no Havaí.

É o Tchan! na Selva

O desfile de hits através das quatro décadas de axé music pela discotecagem da festa Chá de Alice, anfitriã da noite, transportava o público para os passos de dança que eram emulados no carnaval, nas academias e nas barracas de praia de Porto Seguro bem antes dos passos semi-minimalistas do TikTok. Os convidados da noite também foram os protagonistas daquela década, como o vocalista do Braga Boys que cantou “Uma Bomba” — e que, aliás, foi vaiadíssimo porque o público estava já se cansando de esperar a atração principal da noite.

Quando surgiu no palco, o É o Tchan! estava completo: Beto Jamaica, Cumpadi Washington, Jacaré, Scheila Carvalho e Sheila Melo. Nenhum dos grandissíssimos hits da carreira ficou de fora: Pau que nasce torto, Paquerei, Segura o Tchan, É o tchan na Selva, no Egito e no Havaí, Arigatchan, A tomada (aposto que nessa enchurrada de sucessos, vocês também nem lembravam dessa, né?), Bambolê, Disque Tchan (Alô Tchan), Dança do Põe Põe, Gererê…

Mas o É o Tchan serviu muito mais do que isso. Com Cumpadi Washington reservado — já que há menos de um mês ele estava internado na UTI por causa de uma hipertensão -, Beto Jamaica assumiu o protagonismo (como, aliás, sempre fez). Ele, que começou sua carreira nos blocos afro de Salvador — Afoxé Zambi, Muzenza e Ilê Aiyê -, fincou uma base sólida no samba do recôncavo, o samba de roda e o samba duro, variações tradicionais do samba na Bahia. E trouxe elementos centrais da formação desses estilos e sonoridades para o pagode baiano que, no começo, o Gera Samba representava e, depois, na axé music de exportação, o É o Tchan! foi representante máximo.

Principalmente no primeiro disco, de 1995, o samba de roda é o elemento proeminente, com a violas chorando de acordo com a cadência e o suingue desejados, ou evocados nas letras. Estas, narram situações cotidianas — em que, nesse primeiro momento se referem a bairros de Salvador e pessoas próximas, mas que depois vão dar a volta ao mundo, explorando outras referências e estereótipos (sempre ligados à mulher).

Assim, o repertório do show foi longo, passou por “Dengo de Mulheres” — nesse momento, Jacaré estava como dançarino solo no palco e Beto Jamaica, dançando ao redor dele, lhe dá uma umbigada, gesto que, na roda tradicional, é feito por quem está no meio dançando para puxar outra pessoa para substituí-la. E teve também “Pode falar quem quiser”, “Passar a mão”, “Chamadinha”, “Trenzinho”, dentre outras. Aliás, em uma determinada passagem de uma música a outra, a plateia puxou as palmas que caracterizam o samba de roda sem acompanhamento da banda ou do canto de Jamaica, um momento notável e bonito.

Beto Jamaica

Mas o setlist contou não apenas a história do É o Tchan! e referenciou as bandas e cantores que estouraram na mesma época, cada um fazendo axé/pagode à sua maneira. Como o hit do Terra Samba, “Carrinho de Mão”, cujo líder era Reinaldo, que fez parte da primeira formação do Gera Samba; mas também “Desafio”, do Harmonia do Samba, liderado por Xandy — e Beto Jamaica, enquanto o cavaquinho chorava, estimulava a plateia a cantar mais alto em homenagem ao amigo. Mais presepeira, mas não menos divertida, foi o momento de “Tesouro de Pirata (Onda Onda)”, dos cariocas do Tchakabum.

O É o Tchan! foi um fenômeno musical baiano, nacional e internacional. No Brasil, até quem não queria saber do grupo, conhecia ao menos um de seus refrões. Por sua extrema presença nos programas populares de TV ao longo de anos, e talvez também por isso, suas letras que ficavam entre o duplo sentido divertido, o explícito e o caricato geravam críticas sobre a falta de “qualidade” da banda. O É o Tchan! foi muitas vezes taxado como um dos vetores de rebaixamento da música do Brasil, antes representada (supostamente) pelas líricas políticas que descendiam da tradição da MPB dos anos de 1960 e do rock dos anos 1980. Mas justiça seja feita, também pela forma como retratavam a mulher brasileira, reduzindo-a à sensualidade dos quadris pra baixo, na busca do que podemos chamar de uma etnicidade mulata, a la Gilberto Freyre.

No entanto, o duplo sentido, a malícia e o sexo sempre fizeram parte da história da música cantada. E no samba não é diferente. O lundu, por exemplo, que surge das manifestações negras aqui no Brasil, era uma expressão que adaptava, ao mesmo tempo em que preserva práticas culturais, adequando a linguagem musico-coreográfica dos batuques, que mesclavam o sagrado e o profano, à vida urbana. Segundo Muniz Sodré demonstra em “Samba — O dono do corpo”, o lundu foi a primeira música negra a ser aceita e incorporada nas classes abastadas brancas. Passou de dança de roda a número de teatro e se consolidou como canção de humor. Suas coreografias, lá no século XVIII, já prefiguravam o ato sexual.

O É o Tchan!, como todo fenômeno cultural complexo, deve ser pensado como tal, já que pode ser visto por diversos prismas, teorias, abordagens e, principalmente, fruições. O show de 30 anos esgotou os ingressos à venda — ou seja, a banda não foi qualquer grupo de “microondas”, como a Folha de S.Paulo costumava caracterizar, pejorativamente, alguns artistas baianos entre os anos 1990 e 2000. Não à toa, o grupo chegou a se apresentar no Festival de Jazz de Montreux, na Suíça, com banda completa e seu denso intrumental de bateria, percussão, metais, cordas e backing vocal.

Como nota o sociólogo João Gilberto Paim em seu estudo sobre o samba Chula, “no samba de roda, nenhum instrumento é imprescindível, com o bater das palmas dá para se dançar e cantar na roda e, ao mesmo tempo, qualquer instrumento é bem-vindo”. Mas, no caso do É o Tchan!, a rítmica do pagode baiano arranjada com os metais é prato cheio para internacionalização de seu som.

Se da influência europeia o samba do recôncavo já tinha absorvido como essencial a viola — e suas derivações, como cavaquinho, mandolin etc. -, que, inclusive, ditam o ritmo como o samba corre e testa os dançarinos, a percussão do É o Tchan! traz ainda um outro ponto essencial. Como notou o produtor Wesley Rangel, da lendária gravadora WR, responsável pela produção e gravação das bandas de axé e dos blocos afro, o Tchan tinha como base instrumental o Rum — o tambor que emite o sons graves nos rituais de candomblé.

Em um dos momentos mais emocionantes do show — que não foi, com certeza, aquele em que assistimos uma espécie de “Arquivo Confidencial” sobre os melhores momentos das então dançarinas no programa do Faustão -, Beto Jamaica, já sozinho no palco, evoca a plenos pulmões sua origem: o candomblé, o terreiro, o povo do axé (não da música, mas da religião de matriz africana). E volta a cantar aqueles “pagodes das antiga”: “Todo mundo na viagem / No trenzinho da sacanagem”.

--

--

No responses yet