O pioneirismo de Alexandre Matias no jornalismo cultural independente
Seu projeto Trabalho Sujo completa 29 anos, cobrindo cultura e comportamento desde a era pré-internet
No último sábado, o jornalista Alexandre Matias comemorou os 29 anos do Trabalho Sujo — “jornalismo arte desde 1995”. O site e o trabalho do Matias na cobertura musical, curadoria, discotecagem e produção é referência para todo mundo que gosta de música, de música brasileira, de música brasileira independente. O Matias é muito mais do que o cara que você vê nos shows (para quem está em São Paulo) filmando o palco e que te apresenta bandas novas. Ele é pioneiro num modelo de fazer jornalismo cultural. Não é que ele estava aqui quando a internet ainda era mato, o Trabalho Sujo já existia antes mesmo dela adentrar nas casas brasileiras.
Por ocasião do aniversário do projeto e da grande comemoração que aconteceu no último Sábado (01) com uma festa que reuniu vários DJs amigos, aproveitei para entrevistar o jornalista no estilo: tudo que você sempre quis saber sobre o Trabalho Sujo e nunca teve coragem de perguntar. Já ouvi muitas pessoas perguntarem “como você dá conta de fazer tudo?”, “por que você foi escolher escrever logo sobre música?”, “vai ter um festival pra comemorar os 30 anos?”, “de onde você tirou esse nome?”.
A primeira pergunta é também a mais óbvia e batida: por que você decidiu escrever sobre música (em um tweet, haha)?
Cara, ela não é tão óbvia pra mim, porque escrever sobre música, na verdade, não foi uma escolha. Não foi uma coisa que eu falei, “ah, quero escrever sobre música”. E não vou conseguir responder isso em dois tweets, mesmo mas vamos lá.
Eu cresci numa casa com muita música e muito texto. Meus pais, graças a Deus, agradeço eles sempre que posso por isso, tinham uma coisa de coleção de discos e de botar a gente, eu e meus irmãos, pra ouvir os discos, pra ir na loja de discos, comprar discos, escolher o disco que a gente vai comprar. E aí, quando eu comecei a ganhar mesada, eu gastava minha mesada em discos e, depois de um tempo, em livros.
A princípio era revista em quadrinho. Foi como eu comecei a ler e, ao contrário da maioria dos meus amigos, meus pais achavam “pô, massa que ele tá lendo o quadrinho porque ele tá lendo”. Em assim, meu pai e minha mãe estavam sempre lendo, sempre ouvindo, então é uma coisa meio criança querendo imitar os pais. E acho que a escrita veio na sequência. Meus pais não escreviam, mas eu tinha uma coisa com escrever, sempre gostei de escrever. Não tinha computador em casa, eu sou da época que, apesar de já ter computador no Brasil, não tinha computador em casa, então eu escrevia muito à mão, desenhava muito também.
Eu queria fazer publicidade. Aquela coisa de 16, 17 anos, [pensava] vou criar uns slogans, fazer umas propagandas, nem sabia direito o que era. Prestei publicidade na UNB, não passei, prestei no CEUB, que é uma particular de Brasília, passei. Só que meu pai queria que eu fizesse UNICAMP, porque quando ele tava fazendo faculdade era a época que ele viu a fundação da UNICAMP e falou, porra, meu filho, se um dia eu tiver um filho, ele vai estudar lá, e me inscreveu na UNICAMP. E eu prestei o vestibular basicamente porque meu pai me inscreveu.
Fui ver qual curso que eu ia fazer, não tinha comunicação, como não tem até hoje, eu acho. Só tem pós em jornalismo, acho que é já deste século. E fui ver o que tinha pra prestar, e aí tá, Ciências Sociais, trabalha com publicidade? Falei, não vou passar na UNICAMP, nem vou pra Campinas, pego aqui Sociais de boa. E passei. E aí meu pai falou: a grana que eu vou gastar no CEUB, que é a particular que eu tinha passado, é mais caro que a grana pra te manter em Campinas. Vai lá, porra. Vai pra Campinas, fica lá um tempo, se não gostar, volta pra cá e presta o UNB no meio do ano.
Eu fui, na primeira festa que eu voltei pra casa de madrugada, bêbado, ninguém encheu meu saco,e no dia seguinte não tinha ninguém reclamando se eu não fosse pra aula. Eu falei, pra quê que eu vou voltar pra Brasília? E eu tive uma vida bem intensa ali na UNICAMP, especificamente em fazer as coisas. Caí numa turma massa, que a gente tinha uma expectativa muito grande em relação à vida universitária, e a vida na unicamp era bem devagar, então a gente começou a fazer algumas coisas. Fizemos o Cine Clube, porque alguém descobriu uma sala que tinha um videocassete, ganhou o Centro Acadêmico e começou a fazer festa, a gente montou uma banda pra tocar na festa porque não tinha equipamento de discoteca, não era como é hoje.
E uma das coisas que a gente fez foi um jornalzinho. E nesse jornalzinho eu escrevia sobre música porque da turma ali eu era o cara que mais escrevia sobre música, eu adorava ler sobre música. Minha galera em Brasília era muito da música, a gente conversava muito sobre música, e quando eu fui pra Campinas tinha um ou outro que conversava mais sobre música. Falando de rock, a maioria das pessoas ou não conhecia ou conhecia muito superficialmente. Então eu falei, vou escrever mais sobre isso. E, por um acaso no destino, o jornal foi parar num jornal de Campinas que tinha um caderno voltado pra adolescente. Os caras me chamaram e falaram assim, a gente adorou seu texto e a gente escreve nesse caderno pra adolescente, só que a gente tem 30 anos de idade, a gente quer alguém mais novo pra escrever, quantos anos você tem? Eu falei 19. Ah, então escreve aí.
E assim comecei a escrever, primeiro como freela, né? Primeiro como freela sem ganhar nada, mas depois me contrataram. Antes de ser contratado comecei a entrevistar uns artistas por conta própria, as três primeiras entrevistas que eu fiz foi na caruda, né? Falei, ah cara, se eu tô colaborando com o jornal, eu posso entrevistar artistas, posso usar o nome de vocês? Os caras falaram, ah, pode. A primeira foi com o Gil, a segunda com o Chico Science, antes de lançar o disco, e a terceira com o Renato Russo.
Deve ter tido alguns outros artistas no meio, mas eu gosto dessa sequência aí, porque eram três ídolos. O Chico Science não propriamente um ídolo, porque nem tinha coisa lançada, mas aquela coisa de, pô, o cara fazendo um monte de coisa massa em Recife. Enfim, e aí eu fui contratado pelo jornal. Mas o caderno que eu trabalhava foi cortado, porque não tinha anúncio, e eu fui vender uma coisa parecida com o caderno para o concorrente. Eu já tava com o computador em casa essa época, tava começando a diagramar algumas coisas e tive a ideia de fazer um fanzine. Só que aí, com o fim do caderno, eles me perguntaram, ah, você pode continuar no jornal, no caderno de automóveis ou no caderno de cidades. Eu falei, não, não quero nenhum nem outro. Fui demitido e tentei vender a ideia, que originalmente seria um fanzine, para o concorrente. Até que o editor-chefe do jornal que eu trabalhava falou: Matias, por que você tá vendendo para o concorrente? Porque cortou o caderno. Eu cortei o caderno porque eu preciso, mas eu gosto do assunto. Por que você não vende essa coluna para mim? E assim, há 29 anos, nasceu o Trabalho Sujo.
O Trabalho Sujo acaba de completar 29 anos e segue firme e forte rumo às suas 3 décadas de existência, sendo um dos maiores, melhores e mais completos da área. Enquanto todos os sites e revistas de música ou fecharam, mudaram de área, passaram por momentos fora do ar etc., você não só resistiu, como foi ampliando seu escopo de atuação. Você diria que isso é resiliência, paixão ou foi porque deu certo mesmo?
Eu não gosto dessa coisa de, acho que eu sou maior, mais antigo, saca? Maior, melhor, isso aí é muito subjetivo e não tô nessa pra ser maior do que ninguém. Eu acho que o que tem é, justamente, essa persistência aí de continuar fazendo o que eu faço. O Trabalho Sujo começou como uma coluna de jornal, que eu vendia como freela pro jornal, levava o disquete pra redação depois de ter diagramado em casa, um monte de revista embaixo do braço ou capa de disco pra escanear e colocar. Só que num dado momento, eu não vou entrar nisso porque se não alonga demais a entrevista, eu fui contratado pelo jornal como ilustrador.
Também tenho isso, eu desenho. Faz muito tempo que eu não desenho, mas fiquei ali um tempo trabalhando como ilustrador, até que o Diário do Povo, que era o jornal que eu trabalhava, foi comprado pelo Correio Popular, que era o concorrente. A primeira coisa que o Correio Popular fez foi sucatear o Diário do Povo e a cortar todo mundo, diminuir a quantidade de pessoas na redação. Eu era o único ilustrador que sabia usar o Corel Draw pra desenhar, então, além de desenhar a mão, eu também desenhava no computador. E chegou uma hora que ficou só eu, durante dois anos, 1996 e 1997, eu fazia todas as ilustrações do jornal. Storyboard de como foi o crime, o que abre e o que fecha no feriado, mudança de direção de rua na cidade, ilustração pra coluna de política, charge de ilustração pra coluna de opinião… entrava 4 horas da tarde e saía junto com a galera no fechamento final. Isso eu tinha, sei lá, 22 anos.
Aí eu virei pro editor-chefe, que já era outro cara, e falei, cara, tem uma editoria de arte, eu sou um ilustrador, que é o equivalente a ser um repórter, e os editores ficam em cima de mim, todo mundo querendo tudo pra ontem, e eu não tenho hierarquia pra peitar os caras. Como tem uma editoria de arte e não tem um editor, eu acho que eu posso ser um editor de arte. Beleza, fui promovido. E falei, pô, o que é que faz um editor de arte? Ah, vou cogitar mexer no projeto gráfico do jornal. Mexi no projeto gráfico do jornal, que fechou em 2012, com o logo que eu bolei, em 1997. E uma das coisas que eu fiz, quando o jornal foi entrar na internet, foi criar o próprio site, falei, deixa que eu cuido do layout também disso.
E aí fiz todo o layout do site e dei um jeito de colocar o Trabalho Sujo. E isso fez com que o Trabalho Sujo fosse um dos primeiros sites, no Brasil, a cobrir cultura independente. Um monte de gente que eu já me comunicava por telefone ou pelo correio, de lugares diferentes do Brasil, artistas, selos, bandas, começaram a me mandar material e ver que saiu em um jornal em Campinas e que dá pra acessar pela internet.
Antes de vir pra São Paulo, eu viro editor-chefe, editor-chefe não, editor de cultura do caderno do concorrente e passo um ano e meio como editor do Caderno C. E nessa mudança do Diário do Povo para o Correio Popular, eu não levei o nome Trabalho Sujo porque eu falei, se eu falar que eu vou levar o Trabalho Sujo pro Correio Popular, o editor-chefe do Diário vai falar, não, o Trabalho Sujo é do Diário e vou botar outra pessoa pra fazer.
E aí eu não levei, só que eu criei um site paralelo no Geocities, geocities.com/trabalhosujo, em que eu ia postando as coisas que eu queria. Em São Paulo, eu fui ser editor-executivo da Editora Conrad, que é do André Forastieri e do Rogério de Campos, e na época tava bombando por causa do Dragon Ball, Pokémon, tinha mais uma outra coisa, não vou lembrar agora.
E eu continuava fazendo o Trabalho Sujo online, depois o Pablo Miyazawa criou o Gardenal, que foi um dos primeiros consórcios de blog do Brasil, e me chamou. O motivo dele ter criado isso com dois amigos foi que eles viam um monte de gente publicando em Blogspot, Geocities, e falaram, vamos centralizar isso no mesmo lugar. E aí a gente começou a fazer o Gardenal, e depois o Gardenal começou a dar pau de servidores, os caras não tinham tempo pra fazer isso já 2007, então eu junto o Bruno Natal e o Arnaldo Branco, que eu tinha chamado pra ir pro Gardenal, e falo, cara, vamos criar o nosso próprio portal, e a gente cria O Esquema, em 2007. E tudo isso era uma atividade paralela ao trabalho que eu fazia. Então eu fui Editor Executivo da Conrad, depois eu trabalhei como Editor Chefe do projeto voltado pro público universitário na Trama, depois eu trabalhei como Editor do Caderno de Tecnologia do Estadão, depois eu trabalhei como Diretor de Redação da Revista Galileu. E o tempo todo fazendo o Trabalho Sujo como meu fanzine, a minha atividade paralela. Não era uma coisa que eu dedicava meu tempo todo pra ele, é muito mais uma válvula de escape, uma coisa que eu fazia nas horas vagas, e também um jeito de organizar os meus trabalhos.
Na paralela eu tava discotecando, tava fazendo várias outras coisas, e comecei a entender que o Trabalho Sujo, na verdade, era, como é até hoje, um ponto onde eu mostro o que eu tô fazendo. Eu tenho uma produção que eu faço para o TS, mas tem coisas que eu faço em outras áreas que eu digo lá no TS. Então é isso, eu sou curador hoje do Centro da Terra e publico no Trabalho Sujo as coisas que vão rolar lá. Se alguém me chama pra fazer uma entrevista pra um jornal, coisa que eu não faço há muito tempo, eu coloco a entrevista lá. Então tem essa coisa de ter se tornado um ponto de referência pras coisas que eu faço e não pros outros, pra mim. Basicamente é um jeito que eu organizo a minha vida, inclusive. Quando é que eu entrevistei mesmo fulano? Eu vou lá no Trabalho Sujo e tá lá.
Em 2014 eu fui demitido da Editora Globo, onde eu fazia Galileu, e aí eu já tinha trabalhado no Estadão, já tinha trabalhado na Editora Globo, pensei, sendo jornalista, quais são minhas opções? Trabalhar pra essas duas empresas que eu já trabalhei, não quero voltar a trabalhar, ou trabalhar pras duas outras, tanto a Editora Abril, que eu já tinha frilado bastante, quanto a Folha de S. Paulo. Já fui chamado pra trabalhar na Folha cinco vezes, nas cinco vezes eu declinei, porque eu acho o clima na Folha péssimo.
Eu já colaborei com a Folha um tempão, frequentava a redação, mas tinha uma coisa de cultura do esporro. Eu lembro que a última vez, eu tava na Galileu ainda, e a Turra que cuidava da parte de revistas, me chamou pra editar a revista de São Paulo, por um salário menor que eu ganhava na Globo. Aí eu falei, cara, não é só a questão do dinheiro, eu até posso abrir mão de um salário maior, porque eu acho legal fazer a São Paulo, mas na Globo eu não faço plantão de fim de semana, dá pra não dar plantão? Ela falou, pô, Matias, até eu dou plantão, ela que era a chefona das revistas. Eu falei, se tu, chefona das revistas, dá plantão, tá errado, saca? Então não venho.
Então se a minha opção como jornalista é trabalhar pra esses quatro veículos, essas quatro famílias, ou fazer publicidade disfarçada de jornalismo, o ideal era se eu pudesse ter meu próprio veículo. Eu já tinha meu veículo. E aí em 2014 eu comecei a me dedicar 100% pro Trabalho Sujo. Aumentei a produção pra lá, continuei fazendo outros frilas. Mas é isso, né, eu acho que o TS, que tá completando 29 anos hoje, é muito mais fruto desses últimos 10 anos de dedicação que eu tive, porque quando eu foquei ainda mais em música — porque o TS não fala só sobre música, né, eu falo sobre o que eu quiser, né, se eu quiser amanhã eu falo sobre vinho, sobre comportamento, não tem problema — e acabei afunilando tanto pra música, música brasileira, mais especificamente ainda música brasileira independente, que é a base do meu trabalho.
Meus outros trabalhos principais hoje, como curador, como diretor de show, como diretor artístico, também tá muito mais focado em música brasileira independente do que a maioria das coisas, embora eu fale sobre outras coisas também. Mas eu acho que não tem, nunca teve um plano de continuar, sabe? Algumas decisões eu tomei meio que de uma forma arbitrária, porque eu não tenho paciência. Eu lembro direitinho, eu tinha soltado uma música inédita da Tulipa e na mesma semana em que eu tinha achado um vídeo da agência de publicidade que fez um clarinete que toca ali na linha amarela do metrô de São Paulo, né, quando vai ter uma parada. E aí eu postei isso e junto com a música nova da Tulipa, que eu tava todo feliz, porra, eu consegui lançar uma música da Tulipa no TS e tal. E o vídeo do metrô teve, sei lá, 10 mil likes, enquanto a música da Tulipa teve 500 likes. Eu falei, cara, não vou ficar me medindo em número, do mesmo jeito eu não tenho plano de, sabe, essa coisa de business plan e media kit, eu não tenho paciência pra conversar com um publicitário. Ironicamente, queria ser publicitário, mas eu sento numa mesa, os caras falam, você vai usar o boné da marca? Eu falo, cara, boné é coisa de criança. Enquanto todo mundo me fala, não, fala que vai usar, aí chega em cima da hora e você fala que não vai. Mas é, eu não consigo, eu não consigo dar o risinho amarelo pra falar assim, é, tudo bem, vai ser legal, gente. Então, é isso, eu não ganho dinheiro com o TS diretamente, é muito mais uma coisa que eu faço, que eu gosto, que eu quero, e consigo trabalhos a partir disso.
Acho que ele é uma mistura das três coisas que você coloca aí no começo da pergunta. Eu não gosto da palavra resiliência, é mais resistência, né, de continuar querendo fazer. Não que eu não saiba fazer outra coisa, mas eu gosto de fazer isso. Paixão, óbvio, eu acordo pensando o que é que eu vou fazer. E no fim deu certo porque eu continuei. Eu acho que fica essa lição pra quem tá fazendo, de continuar, saca? Porque tem horas que tá bom, tem horas que tá ruim, mas se você baixar a bola toda hora que tiver ruim, você vai baixar a bola com alguma frequência, né, e aí você não continua.
Eu acho que, sei lá, dá pra tirar a lição, é isso.
Acho que uma pergunta que todo mundo que te segue gostaria de fazer é: como você dá conta de fazer tanta coisa, desde estar descobrindo artistas o tempo todo, estabelecendo contato com eles, com os espaços artísticos, com outros curadores, escrevendo, dando aula, gravando, publicando etc.?
Cara, essa pergunta é o seguinte, ela começa com o que eu não faço, né?
Eu não chego a ficar propriamente incomodado com ela porque todo mundo pergunta, né, mas ela me incomoda porque… Não é isso, não é que ela me incomode, essa pergunta, ela de alguma forma, me ofende, porque eu gosto de não fazer nada.
Eu sou muito preciosista com o meu ócio, fico horas fazendo nada. Vou ao cinema duas vezes por semana, sei lá, faço um monte de outras coisas, sabe? A vida tem muito mais que isso, vou pra academia direto, tô namorando, enfim, essas coisas não estão na internet, né? Eu não fico publicando. E tem outra coisa, também. As pessoas se iludem com a internet, acham que tudo que está na internet é minha vida. As pessoas não sabem se eu sou casado, se eu tenho um animal de estimação, no máximo tem uma ideia do bairro que eu moro porque tem uma vizinhança. Eu acho que eu começo respondendo essa pergunta dizendo o que eu tirei da minha vida, porque, no fim das contas, a gente perde muito tempo com muita coisa e desde pequeno eu soube disso, sabe?
Tem algumas coisas que eu tirei da minha vida. Eu não jogo mais videogame, tem mais de 25 anos. Eu era muito fissurado em videogame e parei de jogar porque eu entendi que aquilo ia consumir muito meu tempo. Perco ótimas narrativas, ótimas histórias, ótimos lançamentos, eu acompanho ainda muita gente ao meu redor, do videogame, mas eu não jogo, eu não gasto meu tempo com isso, eu ia falar perco meu tempo, mas não é propriamente perder tempo.
Eu não frequento boteco, especificamente em São Paulo. Por morar aqui, aconteceu uma coisa meio que ao mesmo tempo, eu parei de beber cerveja, deve ter uns 20 anos, e comecei a perceber que em qualquer outro lugar do Brasil, boteco é um lugar ótimo, você encontra as pessoas que você nunca viu na vida e rola altos papos existentialistas ou sobre bobagens, o que acabou de acontecer, ou sobre notícias da semana passada, o filme que você viu. Aqui em São Paulo tem muito culto ao trabalho, as pessoas gostam, mais do que trabalhar, de dizer que estão trabalhando. Eu não tenho problema com quem fala do próprio trabalho, no sentido de tipo, ah, estou bolando uma história assim, rolou uma parada nova, mas o problema é que as pessoas cultuam a reclamação. Então o boteco em São Paulo cai numa coisa de eu não aguento mais o meu trabalho, meu chefe é insuportável, eu continuo ganhando a mesma merreca, um monte de coisa. Eu não cheguei a perder amizades, mas briguei com alguns amigos nessa época e falo, cara, pede demissão, muda de emprego, sai dessa vida, porra, a gente se senta pra tomar uma e cai nessa história?
Comecei a tomar drink, que é muito mais saudável, no sentido de dois ou três drinks por noite, eu não tenho uma baita ressaca, vou gastar um pouco mais, eu acho, do que a maioria das pessoas gasta tomando dez garrafas de cerveja, mas o estrago é menor, pelo menos a curto prazo. Eu estou diminuindo bastante a quantidade de álcool, já bebi bem mais do que eu bebo, mas tirei cerveja e aí quando você não bebe cerveja no boteco fica aquela coisa de, ah, mas você bebeu um drink, você tem que pagar mais, não dá pra dividir igualzinho porque o Matias tomou três caipirinhas. Falei, quer saber, vou parar de frequentar boteco.
Foi nessa época que eu comecei a discotecar profissionalmente também e tinha dois ambientes, eu fiz essa escolha. A balada ou o boteco? Ah, eu vou pra balada, eu prefiro a balada — a night, eu não sou fã de transformar uma palavra digna canções lentas e românticas em sinônimo de vida noturna. Mas é isso, eu tirei boteco da minha vida, eu não dirijo, então não tenho mais preocupações com carro, eu já tive, mas eu cortei carro da minha vida. Eu sou corintiano, mas não acompanho mais futebol, que eu comecei a perceber que, como no videogame, ficar discutindo quem vai ser o próximo técnico, o fulano tá jogando mal, também me fazia perder muito tempo, gastar muito tempo, mais do que perder.
Discutir na internet, também não discuto na internet. É uma regra básica que eu faço, que é quando tô ali conversando nos comentários e o clima começa a ficar um pouco mais tenso, eu viro e falo meu amigo, vamos falar pessoalmente, chama ali na DM, vamos conversar pessoalmente porque não quero bater boca em público pra todo mundo ficar crocodilando os outros. A internet tem muito esse lugar, né, que meio que todo mundo fica esperando uma briga e quando a briga acontece todo mundo fica incitando a briga.
Mas em relação a gastar e perder tempo, acho que a pior coisa que as pessoas têm, no geral, e é uma coisa que eu costumo fazer, é: eu não reclamo e eu não me preocupo. Obviamente, tem coisas que eu reclamo, em coisas com que eu me preocupo, mas as pessoas reclamam de tudo e tem até uma cultura da reclamação, “me deixa reclamar”. Deixo, reclama e fica gastando seu tempo. Pô, se você tá com um parente no hospital, com uma doença grave, com motivos pra se preocupar, sabe, na iminência de ser demitido, sacando isso, é natural que você se preocupe. Mas tem coisas que tá fora da tua alçada, você não vai conseguir resolver, sabe, você ficar preocupado porque amanhã pode chover? Cara, deixa, acorda amanhã e vê se chove, mas não vai passar morrendo de véspera, saca? Ai, fudeu, o show não vai rolar porque a previsão do tempo diz que vai chover. Cara, óbvio que quem tá trabalhando com produção, propriamente dito, é uma preocupação, de fato. Agora, se é o artista, se é o público, cara, espera. Espera, porque eu acho que reclamação e preocupação ocupam a imaginação do jeito errado. Você começa a imaginar coisas e a imaginação é o lugar pra você imaginar o que você quer da vida, o que você quer fazer, o que você gosta de fazer, começa a imaginar que lugar que você quer viajar, que país você quer conhecer, que artista você quer ver ao vivo, que atividade manual você quer desenvolver, que idioma você quer aprender. Tudo isso parte da imaginação e as pessoas gastam a imaginação dela preocupadas com, sei lá, com as maiores futilidades.
E aí tem outra coisa que conversa diretamente com essa tua pergunta, que é fazer, né. Se eu tenho uma ideia, se eu quero fazer, eu vou lá e faço. Eu não fico elucubrando. Eu não entro mais em projeto, juntar contigo pra gente ficar seis meses de brainstorming, uma coisa que, sabe, de novo, eu estou gastando errado o meu tempo. Acho que no fim das contas, resumindo tudo, eu sei gastar meu tempo, eu gosto de dormir também, mas eu acho, se eu pudesse, eu lembro quando era um moleque, tinha uma história que o Michael Jackson dormia numa câmara hiperbárica, não lembro qual que era o nome certinho, que ele dormia uma hora e era o equivalente a dormir doze horas. É tudo que eu quero da vida, porque às vezes é isso, eu gosto de ficar sem fazer nada, eu amo a preguiça, ficar deitado, sem nem ler, sem nem estar vendo filme, só desocupando a cabeça, mas usar esse tempo pra dormir eu acho ruim. Adoro o cochilo depois do almoço, pelo menos pra mim é crucial, mas eu durmo seis horas por dia, é isso que eu preciso de sono. Você tem que descobrir seu ciclo de sono, mas aí é um outro papo.
Você mostra artistas novos pra gente, que é seu público, mas você também nunca deixa de colocar sua visão objetiva sobre um show, disco ou curadoria em seus textos e posts, que podem ir do 0 ao 10. Nesse cenário atual, em que a crítica e as redes sociais não exatamente se dão bem, você enfrentou algum problema com isso alguma vez?
É, eu sinto falta da crítica de fato, no meu caso. Eu acho que existe crítica musical no Brasil. Eu sou contra essa visão de que, ah, não tem mais jornalismo, não tem mais crítica musical. Tem, e talvez esteja em sua melhor fase, muito consciente disso, inclusive. O problema maior é que são pessoas e personagens que estão fazendo isso meio que, não só à margem, mas em lugares que, se você não é do ramo, você não vai encontrar fácil. Então você não tem mais jornalismo que cobre música direito, nem crítica musical nos grandes veículos, no jornalismo industrial.
O jornalismo industrial brasileiro ou o jornalismo das grandes famílias, escolha o rótulo, enfim, eu prefiro trabalhar com o industrial porque é isso, trabalha numa escala de milhões, vendendo notícia para milhões de pessoas, esse jornalismo meio que abandonou tanto a cobertura de música propriamente dita, quanto a crítica musical. Mas eu meio que não existo mais na crítica, como eu gostaria, mesmo porque cai numa coisa meio fofoca. Do tipo, você viu o que o Matias escreveu sobre você? Sei lá, eu escrevi outro dia um texto sobre a Céu, que eu fui no show dela, que a gente foi, inclusive, ali na Áudio, lançamento do disco novo dela. Eu gostei do show, mas fiz um comentário que eu não gostei do disco anterior dela, o disco antes de “Novela”, que eu acho péssimo. Mas eu não escrevi sobre esse disco, porque eu não queria simplesmente pixar a céu em público, eu não tive essa conversa com ela. Eu conheço a Céu a ponto de poder falar algumas coisas para ela, como conheço vários outros artistas, então prefiro falar isso diretamente para o artista, sabe? Acaba o show, eu chamo ele ali no canto e falo assim, cara, você viu que você fez tal coisa, tal coisa, tal coisa? Aí o cara, pô, pode crer. Às vezes eu falo depois, né, porque às vezes tem toda a empolgação pós-show ali que acaba fazendo com que a pessoa entenda o comentário como uma crítica pesada.
A minha avaliação é que, pô, tô aí há quase 30 anos, né, e quase 30 anos também fazendo jornalismo online. Eu fui cancelado antes de existir o conceito de cancelamento, falando em 2003, 2004, acho que 2004 quando eu fui cancelado. Enfim, isso é outra história também. E eu sei como, tenho uma ideia, pelo menos, de como as pessoas se comportam online. Sei da importância de cada palavra, como cada palavra pode ser lida. Tava falando da história da Céu, né, a pessoa entrou no meu post e fez um comentário assim: você escreveu esse texto todo só para falar mal da céu? Aí de novo, não vou discutir online, mas eu falei bem da Céu, eu só comentei que eu não gostei do disco anterior dela, sabe, então eu tô tranquilo disso.
Quem me conhece sabe o quanto eu fui impactado negativamente por esse filme A Substância, sabe. Achei umas das piores coisas que eu já vi em muito tempo, muito tempo. Tem boas atuações e tal, mas que filme horroroso. E eu não vou escrever sobre isso, saca? Porque no fim das contas, e eu acho que tem muito isso, muito artista vem me falar, Matias, você nunca escreveu sobre mim ou você não comentou sobre o meu disco novo ou por que você não fala sobre determinada coisa?
Há casos e casos. Tem coisas que eu gostaria de escrever que não eu consegui, tem coisas que às vezes eu tô muito enrolado com outras coisas e não dá tempo. Mas se eu tô falando daquilo, é porque aquilo já passou pela minha avaliação como sendo bom, entendeu? Se eu não tô falando, então vou criar um texto pra falar mal de A Substância, saca? Pode ser que no futuro as pessoas aprendam a lidar melhor com a internet, e eu volte a fazer isso. Eu prefiro falar ali no téte a téte, conversar com os meus amigos, com as pessoas que eu sou mais próximo. Tá, eu quero saber como essa porra de filme horroroso tá fazendo sucesso, ou eu tô errado em fazer isso, em achar isso, enfim, também tem isso. Mas, no fim das contas, eu não quero gastar o meu tempo, porque na hora que eu fizer um texto falando mal de A Substância, eu tenho certeza que eu vou ser assoberbado por um monte de comentário atacando a minha opinião, me atacando, né? Quando eu assisti o filme, eu fui assistir com uma amiga minha que virou pra mim e falou assim, mas você não pode falar mal sobre isso porque é um filme sobre mulher, você não tem lugar de fala de mulher. Eu falei, cara, não falei mal desse filme porque é um filme sobre mulher, é a mesma coisa de dizer que eu não posso falar do Velozes e Furiosos porque eu não dirijo, só que tem nada a ver.
Melhor a gente mostrar coisas legais que estão rolando, mais do que ficar apontando o dedo. Olha, isso aí que você tá gostando é uma merda e, tipo, eu sei que metade do jornalismo adora isso. Tem um monte de gente que adora a polêmica vazia e que rende clique, que gosta dessa discussão, mas eu não, não, eu já tive nesse lugar, inclusive. Mas pra que que eu vou ficar escrevendo sobre isso? Pra irritar o fã? Deixa. Como diria o bom e velho Mr. Catra, deixa as pessoas.
Quais são os planos para os 30 anos do Trabalho Sujo?
Cara, eu não pensei em nada específico, embora tenha algumas ideias vagando. Uma é ajustar o site, porque ele ainda é um site noticioso e eu queria que ele fosse visto como um portfólio. As pessoas não sabem o que eu faço. Tem gente que fala assim, pô, mas eu te conheço da época que você cobria a tecnologia, eu não sabia se você discotecava.
Outro dia eu encontrei com uma amiga minha que foi assistir um show no Centro da Terra e falou, pô, que legal aqui, você já conhecia? E eu falei, cara, eu sou curador daqui desde 2017. Ela, como assim? E não é uma pessoa que mora em outra cidade, que não tem Instagram. Só é uma pessoa que eu não tenho um convívio mais frequente e, provavelmente por isso, não é impactada pelos meus posts, porque a gente sabe que essas redes também trabalham com a questão da proximidade geográfica, né? Quanto mais você encontra as pessoas pessoalmente, os celulares vão se aproximando e o que a gente publica é mostrado uns para os outros. Mas não dá para fazer com que as pessoas queiram saber de tudo o que eu estou fazendo, entendeu? A partir do pressuposto de que é “óbvio, todo mundo vai saber”. Então eu queria dar um jeito no site que ele fosse entendido como um portfólio do que eu faço, do que eu já fiz e, eventualmente, conseguir trampos por isso, mas isso está ainda num plano abstrato.
Tenho sondagens para escrever um livro. Estou escrevendo dois livros agora, na real, um livro que eu estou fazendo para o Sesc, sobre tecnologia digital e produção cultural, e outro livro que eu estou fazendo com o Fabrício Nobre, que originalmente era o livro de 25 anos do Bananada, mas a gente ampliou um pouco mais o tema. Esses livros já estão sendo produzidos, mas eu queria fazer uma ontologia do TS, pegar textos desde os anos 90 e publicar, também já tenho umas pré-sondagens disso. E óbvio, uma festa, um show. Não gosto da ideia de festival, embora eu goste de uma coisa que parece um contrassenso, que é o mini festival: você ir numa noite que tem quatro bandas. Eu acho o mini festival uma coisa meio anão gigante, sabe, parece uma coisa diferente.
Como eu faço muita festa e estou fazendo muito show, estou juntando aí, de um ano e meio para cá, essas duas atividades de discotecar e curadoria, com o Inferninho e o Trabalho Sujo, mostrando artistas novos. Agora estou espalhando o Inferninho para mais casas. E tendo tendo a uma convergência das festas, quem sabe, fazer uma grande festa. Mas aí de novo cai na coisa que eu estava falando na primeira pergunta que tu fez. Eu não sei se eu quero grande, entendeu, porque outro dia eu fiz a festa de 29 anos, que tu estava, e era uma festa pequena, uma festa para… sei lá, se passaram 200 pessoas ali por aquele lugar, foi muito. Simultaneamente deviam ter 100 pessoas, gente que chegou mais cedo, gente chegou mais tarde, e pra mim isso é um festão, para mim isso é um festaço. Dei uma das melhores festas que eu fiz em muito tempo, e eu faço festa toda semana. Então eu fico pensando nisso, assim, como é que eu junto o Desaniversário, que é a festa que eu faço com a Camila, a Clarice e o Claudinho ali no Bubu, com uma outra festa que eu estou pensando para o ano que vem, que talvez se chame só Trabalho Sujo, que seria o segundo degrau do Inferninho.
Mas é isso, também é muito cedo para pensar, estou exercendo minha imaginação nesse sentido, não só pensando, mas também compartilhando isso. Do mesmo jeito que eu estou falando com você, eu já falei com outras pessoas sobre isso, você não é a primeira pessoa que me faz essa pergunta sobre os 30 anos. E aí eu acabo compartilhando isso porque às vezes alguém fala, pô, conheço um lugar legal; pô, você podia falar com o fulano. Eu acabo meio caindo nesse lado de autoajuda quando eu dou essas entrevistas. Eu compartilho as ideias que eu faço com os outros porque eu acho que isso ajuda elas a tomarem corpo.
Até, sei lá, meio do próximo semestre, os 30 anos do TS são muito mais um exercício de pensar como é que eu posso comemorar isso do que propriamente algo factual
E por que “Trabalho Sujo”?
É engraçado, eu queria fazer publicidade porque eu gostava de slogan, mais do que marca. Eu gostava de uma frase de impacto, um nome de efeito. Sempre curti isso e vem com muita facilidade pra mim. Trabalho Sujo é a coisa que eu fiz há mais tempo e que está aí até hoje, né, e vem da expressão “é trabalho sujo, mas alguém tem que fazer”. E acaba funcionando para várias coisas que eu faço, né? Editar um caderno de tecnologia, com abordagem de comportamento e cultura; chamar os artistas para experimentar coisa nova no teatro, no show, no palco, antes de pensar em gravar; falar da cultura independente brasileira, enfim… Quase todas as coisas que eu faço é um trabalho sujo, mas alguém tem que fazer. E esse alguém sou eu. E aí outras marcas eu consegui criar nesse tempo, meu podcast chama Vida Fodona, tive uma festa chamada Gente Bonita em Clima de Paquera, tive Noites Trabalho Sujo, agora é Inferninho Trabalho Sujo. Mas sempre que eu bolo nome pras coisas, eu fico satisfeito.