LATÊNCIA, de César & Juliano
Cesar Martini é músico e editor de vídeo. Atua como orquestrador, arranjador, compositor de trilhas sonoras e técnico de som. Juliano Gentile é músico e curador musical, compõe a banda Berberes e trabalhou nas principais instituições da cidade de São Paulo, como CCSP e, atualmente, IMS, além do Festival Chiii, ao lado da diretora Manuela Wright. O encontro criativo entre os dois músicos resulta no Duo Cesar & Juliano, que tem tido, ao longo desse período pandêmico, uma produção criativa consciente — no sentido amplo da palavra.
Em outubro de 2020, eles lançaram o álbum “faixa cinco”, em que fazem dialogar seus instrumentos, o sax e a viola de Martini, a guitarra e o violão de Gentile. O trabalho é bastante representativo da auto descrição do duo, de buscarem confundir a voz da guitarra e do sax na execução; bem como do momento de pandemia vivido, já que a faixas são diálogos, cotidianos e afiados, que vêm sendo travados ao longo desse período. Abre o álbum a faixa “dale”, na qual o som da guitarra soa provocativo, enquanto o sax promove as variações mais significantes de altura e andamento. Enquanto “pra semana, prometo, talvez” segue de forma arrastada, com uma atmosfera um pouco mais densa do que as precedentes, ou, quem sabe, até mesmo letárgica, como seu título mesmo pode fazer parecer. “Bum da lo” poderia, tranquilamente, ser uma trilha jazz para assistir ao pôr do sol. O álbum possui 8 composições bem diversas entre si e vale a pena ser explorado.
Já o trabalho mais recente do duo é “Latência”, uma série dividia em episódios que vão ser lançados de forma esporádica pelo selo Brava. Na descrição do projeto, dizem:
“Latência é o substantivo feminino que escolhemos:
período em que algo se elabora antes de assumir existência efetiva,
condição daquilo que não se manifesta,
tempo de ida & volta,
sexualidade adormecida,
período sublimado,
a invenção de um segredo,
a quantidade de atraso,
o Brasil do futuro.”Latência é o fim adiado em episódios.”
Nada descreve melhor o que vivemos do que o substantivo escolhido pelo duo. E ele dialoga com premissas e elaborações contemporâneas outras que nos circundam, que inclusive suplantam a questão da crise sanitária que atravessamos. Como a tentativa de liquidação da cultura pelo governo e o ataque frontal ao que de mais sólido e instável construímos: a nossa jovem democracia. A transformação da latência em matéria artística, buscando adiar o fim, nos remete também às incisivas reflexões trazidas por Ailton Krenak em “Ideias para adiar o fim do mundo”, que diz respeito aos diversos “fins do mundo” em tempos diferentes que perpassam a desumana jornada civilizatória da modernidade.
E se uma forma de adiar o fim do mundo é “sempre poder contar mais uma história”, como diz Krenak, Cesar & Juliano têm em “Latência” uma bela ideia já em vias de desenvolvimento. O primeiro episódio é “Ninfa”, que pode significar o estágio da metamorfose em que há uma imobilidade completa — a crisálida, que não é outra coisa senão… latência. Ouvir “Ninfa” é como dar um mergulho rapidinho ali sob a terra, de olhos fechados, e passear por um túnel de cigarras cantantes que dialogam com a viola ponteada de Martini. As cigarras ora soam mais altas, ora dividem o protagonismo com seus sons arredores, enquanto as cordas vão sendo pautadas de forma constante.
O episódio — ou faixa — tem 7 minutos e 21 segundos. É para ser ouvido sem pressa, para que ele te leve para o tal estado de suspensão, ainda que lá não se encontre uma mera fruição de sons da natureza. A edição e a hibridez sonora invocam pontos de tensionamento, que vão entrelaçando elementos distintos em seu percurso.
Conversei com César & Juliano sobre o projeto, sobre a ideia original e sobre quais serão seus desdobramentos, sobre o desafio de ser artista na pandemia sob o desgoverno e um pouco sobre a origem de seu trabalho conjunto.
Poro aberto: Em primeiro lugar, como surgiu a dupla César & Juliano?
CÉSAR: A gente se conheceu num curso. Era uma classe de cerca de 20 pessoas. A guitarra vermelha e o olhar atento do Juliano me chamaram atenção. Quando descobrimos que morávamos perto, a dupla surgiu! De lá (finzinho de 2016) pra cá, fomos descobrindo muitas semelhanças entre nossas histórias, jeito de pensar música, etc.
JULIANO: Nesse curso o César às vezes aparecia com o sax, às vezes com a viola sinfônica. Quando você achava que era uma coisa, vinha outra. Gostei daquilo. E foi mesmo crucial o fato de morarmos perto em São Paulo, sendo ambos de cidades vizinhas. Ele de Santo André e eu de Guarulhos. Dá pra dizer que a dupla surgiu no metrô, comentando as aulas e a vida. De lá pra cá essa conversa só cresceu.
PA: Latência, como vocês mesmos descrevem lá no site da Brava, tem um leque de variações de sentido em torno de uma ideia comum, que é o que está em suspensão. Mas mesmo o que está suspenso ou esperando, está acontecendo, né? Ali o tempo transcorre de qualquer forma, mesmo na espera. Como surgiu a ideia da série “Latência“?
CÉSAR: A gente ensaia bastante, conversa, ouve e assiste muita coisa junto, de espetáculos de dança à música “de concerto”. Às vezes mais conversa que toca! rs No começo de 2020 a gente começou a redirecionar a forma de ensaiar, colocando mais práticas da composição do que propriamente de improviso. Era algo que a gente sempre falava, desde o começo, algo latente. Com o isolamento, e transferindo os nossos ensaios para o mundo online, a gente se deparou com a latência digital. E essa ideia de espera, suspensão, ou mesmo atraso começou a pipocar em tudo que a gente bolava!
JULIANO: Teve uma confluência entre o contexto do isolamento social e esse desejo de trazer algo da composição para a improvisação. A dificuldade de tocar à distância em tempo real nos levou a desdobrar outros caminhos para a criação. Quanto ao conceito de latência, adotamos o nome justamente por ter esse leque de sentidos, além da questão técnica do atraso entre uma coisa e outra. Você pode pensar metaforicamente nessa defasagem entre as falas como se isso fosse em alguma medida inerente à toda comunicação. Além disso, estamos tratando de tempo, que é a matéria prima da música, junto com o som. Latência também remete à psicanálise, à política. Você pode pensar o Brasil como uma grande latência, como um país que nunca aconteceu (não reparou o passado escravocrata, o genocídio indígena, não puniu ditadores etc), e no entanto estamos aqui falando como “brasileiros”. Outra coisa importante é que Latência só virou uma série quando compartilhamos a ideia com a Angela, que nos acompanha desde o início, e que convidou a gente pra lançar os episódios pelo selo Brava.
PA: O episódio “Ninfa”, que abre a série, remete à natureza: as cigarras e os sons sutis que estão no entorno desse canto, como pássaros ou um caminhar sobre folha ou pedra. Ao mesmo tempo, a viola do César me trouxe uma sensação de um pouco de tensão e não o “chorado” da viola caipira a que estamos acostumados. Queria que vocês comentassem se minha percepção foi na direção certa (se é que isso existe, rs) e qual o papel da natureza nesse estado de “Latência”?
JULIANO: Não foi intencional gravar a natureza, pelo menos não no início. Estávamos trocando arquivos, como uma correspondência sonora. O César me mandou um áudio de sete minutos tocando a viola caipira desse jeito que você menciona, pouco familiar ao instrumento, com uma abordagem minimalista. Achei ótimo! Para criar uma resposta, meio que instintivamente fui pra guitarra, mas não fiquei satisfeito com o resultado. Um dia, passando por um bosque, ouvi um som muito forte de cigarras que parecia perfeito para a viola. Era contínuo e com contornos muito expressivos. Peguei um gravador e fui atrás desse canto, que é um canto de acasalamento. O problema é que elas só fazem isso durante um período determinado do ano, e eu não consegui captar aquele som com a mesma intensidade que eu tinha escutado da outra vez. Fiz vários testes até que, fuçando meus arquivos, achei um áudio que eu tinha gravado há sete anos com cigarras. Era perfeito, tinha o efeito de coro que a gente queria. Eu nem processei o som (até porque acho que as cigarras já nascem com um pedal fuzz). Cortei, colei, sobrepus e editei, mas o canto está lá. Era um áudio que eu nem lembrava que tinha. De novo, a latência.
CÉSAR: A cigarra é um exemplo muito transparente da ideia de latência: ela fica lá no subsolo em estado de larva, e quando vem à superfície, na fase adulta, vem com a pulsão do encontro reprodutivo, e “berra” procurando acasalar. O canto de algumas espécies pode ultrapassar 100 decibéis, algo que equivale ao som de uma britadeira. Pelo que pesquisamos, essa fase adulta dura muito pouco, em certos casos por volta de um mês, já a do desenvolvimento no subsolo pode durar até 17 anos para algumas espécies. A tensão pode estar na expectativa quebrada ao “chorado” caipira sim. A sonoridade característica da viola caipira são as dez cordas ponteadas em simultâneo. É um som bastante vivo, tem colorido e brilho, no entanto em “Ninfas” eu abafo as cordas na mão. Pode até parecer uma viola caipira enrustida, engasgada. A corda abafada sendo percutida contra o braço do instrumento faz ressoar um som agudinho que lembra um bipe de hospital. Antes de ganhar ares de natureza com as cigarras, ouvi de uma mina que esse bipe a tensionava. Há outras possibilidades de tensão: a música parece que não vai pra lugar algum (mas vai), o ritmo em sete, o ponteado constantemente crescente, a harmonia que vai surgindo a cada mudança de nota sem uma sequência padrão. Quando o Juliano trouxe a ideia de trabalhar o som de cantos de cigarra em sua concretude, como uma soma ou metamorfose da viola que gravei, eu pirei! Foi uma leitura muito potente que ele fez ao ouvir o meu choro na viola.
PA: “Latência” também é o que a gente está vivendo há um ano e meio com a pandemia, isolados socialmente, sem saber o que vem pela frente, quando vem, se sairemos vivos. Vocês mesmos dizem que a ideia do projeto é adiar o fim, nesse país que se afunda em atrasos hoje. Como é criar nesse contexto e qual o papel que a criação — sobretudo da música experimental — assume para vocês (individual ou coletivamente) hoje?
JULIANO: Sim, é um tempo dilatado, em vários sentidos. Essa ideia de adiar o fim é uma referência ao Ailton Krenak, que faz essa colocação em seu livro/conferência, como se o fim já estivesse acontecendo, como algo não distante de nós. Temos mais de 530 mil mortes, em grande parte evitáveis, isso já é um fim do mundo. Acho que ao mesmo tempo que a pandemia traz essa quebra no tempo, por ser uma situação excepcional, ela escancara algo que sempre existiu. Basta ver como cada grupo social reagiu ao vírus, quem foi mais afetado e quem pode ficar em casa e se proteger. Num momento em que a solidariedade parecia ser um pressuposto, a desigualdade aumentou. Claro que há também reação, mobilização, mas no caso do Brasil ainda temos que lidar com o negacionismo e o fascismo, que sempre esteve aí, às vezes escondido, às vezes explícito. Por exemplo, durante a pandemia descobri que nosso país sediou o maior partido nazista fora da Alemanha, na época do integralismo. Quanto à criação nesse contexto, pra mim continua sendo uma forma de se viver. Coletivamente, considerando a música experimental, e falando de modo mais genérico, acho que ela traz uma potência em sua própria forma, mas isso não resume tudo. Talvez essa potência se abra na medida em que gera outras socializações, ou, se preferir, cenas, redes, ecossistemas (tem um texto interessante sobre isso do Bruno Trchmnn e J-P Caron)*. Claro que, nesse momento de isolamento social, essa dinâmica de socialização muda muito, assim como a própria criação. No caso do duo, a gente tentou ficar nem tão saudoso dos shows, nem tão deslumbrado com a internet, que talvez ainda esteja engatinhando em termos de formatos e possibilidades. Fomos criando sem querer simular a experiência ao vivo, pensando que o contexto é outro.
*Gato Tosco Contra Tigres de Papel:
https://lavrapalavra.com/2020/06/04/gato-tosco-contra-tigres-de-papel/
CÉSAR: Exato, e também vejo que há um certo enfrentamento geracional. Eu tenho bastante resistência ao mundo não-presencial, mas é um mundo inevitável. Então, cabe a mim tentar extrair o melhor das potencialidades do online. Não é fácil, porque a presença física tem um impacto corpóreo que o online não tem (e provavelmente nunca terá). E também, com a internet sendo catequizada por uma visão extremamente individualista, principalmente nas redes sociais, o online vai ficando intragável. O isolamento social é uma realidade de poucas pessoas, um privilégio, e eu ainda não vejo a internet com toda potência democrática de acesso que ela sempre prometeu. Mas isso pode ter a ver com essa resistência que eu confessei. Tento transmutar minha visão para aceitar o online e suas possibilidades. Vejo que criar é tentar se encontrar naquilo que se é, e que se tem. De certo modo, me parece que a criação é uma maneira de se perder no outro e de se encontrar em si, ou de se perder em si e se encontrar no outro. Nesses encontros e desencontros talvez uma espécie de cuidado coletivo vá surgindo. ‘Latência’ tem emergido nesse contexto: sem saber o que vem pela frente.
PA: O que podemos esperar para os próximos episódios e quando eles saem?
CÉSAR: A gente tem um leque de trabalhos que iniciamos, e as soluções têm aparecido no meio do caminho. Em ‘Ninfas’ foi em um bosque! Na minha cabeça esses trabalhos são episódios já, mas pode ser que eles nunca saiam do subsolo. Eles ainda não têm nome, mas têm apelidos: ‘dois violões’, ‘inércia produtivista’, ‘cova américa’, ‘frases freitas’, ‘asculta corazòn’, ‘margarina’. Revelo esses apelidos porque eles podem dar uma noção do que esperar.
JULIANO: Uma das coisas que mais gosto nesse projeto é desse tempo que a gente dá a si mesmo e a esses materiais brutos que o Cesar comentou. Fazer uma série ao invés de um álbum, por exemplo, deixa em aberto não só o ritmo de lançamentos como também o próprio formato que a gente vai utilizar. Internamente elaboramos o que seria um cronograma ideal para os próximos, mas queremos manter essas portas abertas. Em todo caso, pra te responder mais diretamente, no meio de agosto sai um novo episódio.
Para ouvir “Ninfa”, episódio de LATÊNCIA, acessem o link abaixo: