Elis & Tom, o documentário, mostra arquivos preciosos em roteiro mal estruturado
Estreia hoje nos cinemas o documentário Elis & Tom — Só Tinha de Ser com Você, dirigido por Roberto de Oliveira e Tom Job Azulay, que mostra as imagens da gravação do disco de 1974, de mesmo nome. O filme também reúne inúmeros depoimentos dos músicos e testemunhas da gravação, além de críticos, empresários e nomes de destaque que trabalharam com Jobim e Elis ao longo de suas carreiras. No entanto, apresenta roteiro mal costurado e cheio de sobras.
Roberto de Oliveira era o empresário de Elis à época da gravação e foi ele quem teve a ideia de colocar os dois artistas juntos dentro do estúdio. Com Tom Jobim morando em Los Angeles, a gravadora custeou a ida de Elis, César Camargo Mariano — seu companheiro e músico designado para fazer os arranjos — e a banda. Essas imagens, guardadas por 50 anos e das quais só conhecíamos o trecho em que a dupla canta “Águas de Março”, originalmente gravadas em 16mm, foram restauradas em 4K e som editado com ajuda de inteligência artificial.
O roteiro do filme costura as imagens da gravação a depoimentos de pessoas envolvidas na indústria musical, presentes no estúdio ou envolvida nas negociações e que tocaram com Jobim ou Elis. O roteiro cria marcadores de divisão entre a personalidade musical de ambos “antes” e durante o disco, mas se perde na própria cronologia.
A ideia era mostrar como o canto e a interpretação vocal e corporal de Elis se contrapunham à essência minimalista da Bossa Nova. No entanto, as imagens de arquivo recuperadas abrangem desde a cantora cantando “Arrastão”, no 1º Festival da Música Popular Brasileira, passa por ela brilhando na mistura entre MPB e Jazz no Festival de Montreux em 1979 e sua trágica morte em 1982, incluindo close em seu rosto dentro do caixão. No discurso do filme, reiterado pelos entrevistados — não sem deixar de mostrar algumas percepções contraditórias -, a cantora tinha a carreira como a parte mais importante de sua vida. Por isso, temia envelhecer e perder tanto o protagonismo, quanto o vigor de seu talento. Assim, sua morte estaria “justificada”, sua carreira encerrada ainda no auge (um auge de 30 anos, diga-se) . Ou seja, ela mesma tinha consciência de que estava provocando aquilo — Elis morreu em decorrência de uma parada cardíaca por overdose.
Já no “antes” de Tom Jobim, vemos construída a história de sua genialidade e a dedicação dos primeiros anos de formação, junto a mestres consagrados da música erudita, como Koellreutter e Radamés Gnatalli, e a conflagração da bossa nova, que o tornou mundialmente conhecido. Jobim esteve junto Frank Sinatra e os principais músicos de Jazz dos Estados Unidos — para citar alguns: Urbie Green, Jimmy Cleveland e Ron Carter. O baixista, em depoimento, o chama de “gênio casual”. Imagens de Jobim já em idade mais avançada também são mostradas nesse “antes”, mas não sua morte.
A narrativa do filme insiste no conflito entre Jobim e Elis durante as gravações e até mesmo antes. Elis estava com o prestígio em baixa no Brasil por ter cantado na abertura das olimpíadas do exército (me recuso à letra maiúscula) em plena ditadura — ato atribuído por Roberto Oliveira ao antigo empresário sem tato. Jobim há muito desfrutava de um auge que parecia ser eterno, próprio dos gênios, e morava em Los Angeles. A ideia de juntá-los custou esforço diplomático, saliva e muitos tostões aos membros da gravadora. O encontro aconteceu, mas o disco quase que não sai devido aos conflitos — estéticos e de personalidade — de ambos.
César Camargo Mariano relata as cenas mais engraçadas e as sucessivas alfinetadas de Tom — a desconfiança quanto a sua capacidade de arranjador, a banda escolhida e o uso de instrumentos eletrificados, a guitarra, o baixo e até o piano. Alguns depoimentos são preciosos, outros sobram por irem além do assunto central. As tomadas das gravações recentes fazem com que planos iguais se sucedam nos cortes. Sem falar na câmera na mão apenas na gravação de Menescal.
Quando finalmente mergulhamos nos dias sucessivos no estúdio, já se passaram bons minutos desde o início do filme. E vemos o tal clima de tensão ir aos poucos se desfazendo até que Elis e Tom estão contando piadas, com olhares magnéticos um para o outro ouvindo o material e com uma proximidade tal que, supostamente, teria causado ciúme em César Camargo. A esposa de Tom e a filha Beth (então com 16 anos) estão entre eles, César ao lado e até o bebê João Marcelo Bôscoli com seus pequenos passinhos e chupeta na boca aparece.
As imagens captadas por Tom Job Azulay em 16mm acompanharam Elis e Tom desde que ela desembarcou no aeroporto. Esse é o sentido do documentário. E não há dúvidas de que o brilho das imagens de arquivo que foram recuperadas somam um material da maior importância e beleza, bem como as entrevistas com aqueles que já se foram antes de ver o filme ganhar vida no cinema.
Destaco ainda a originalidade do depoimento do engenheiro de som que ficou responsável pela gravação de um dos álbuns mais importantes da história da música brasileira e extremamente ouvido mundo afora: Humberto Gatica, recém-formado eentão o único técnico disponível, que realizou ali seu primeiro trabalho como responsável pela cabine. O filme é também uma chance de conhecer de perto os músicos Hélio Delmiro e Paulo Braga — que usam de uma expressão excelente para falar de como Elis foi moldando sua interpretação para o trabalho, “atravessou o riacho”.
Elis & Tom — Águas de Março