Amaro Freitas: o interlocutor do jazz contemporâneo no Brasil
O pianista Amaro Freitas, de 28 anos, nascido em Recife, lançou no ano passado seu segundo disco, Rasif, com o qual sua música ganhou amplificação nacional. Em 2016, ainda com 25 anos, Amaro fez sua estreia com o disco, não menos excelente que Rasif, Sangue Negro, em ambos acompanhado pelos músicos Jean Elton e Hugo Medeiros, que formam seu trio de piano, baixo acústico e bateria.
Nesse ano que chega ao fim, Amaro pôde mostrar sua música por todo Brasil e pelo mundo de forma intensa. E para coroar o ano do compositor, agora, no final de 2019, ele foi um dos vencedores do edital Natura Musical, com o qual deverá lançar um novo disco em breve.
Entrevistei Amaro depois de conhecê-lo em uma apresentação que ele fez na Blue Note São Paulo, em junho deste ano. Nosso papo girou em torno da relação do compositor com o jazz, da trajetória dele até aqui, sobre como ele tem percebido a recepção de sua música pelo Brasil e pelo mundo com suas tours intensas e, por fim, ele me dá uma perspectiva pessoal sobre como podemos pensar e atuar no meio da produção cultural em um país tão grande como o nosso.
O que a entrevista revela é um compositor maduro, de experiência musical e de vida incomum no meio da música independente brasileira. Ao longo de suas falas, Amaro Freitas nos dá alguns elementos para entender porque sua música tem puxado o fio da renovação na música instrumental brasileira e no jazz enquanto gênero.
Poro Aberto: Como você chegou ao jazz? Já li em entrevistas que você começou tocando na igreja e que se recusou a entrar na faculdade de música porque lá iria aprender o repertório da música europeia antiga.
Amaro Freitas: Eu comecei no jazz primeiro pelo contato auditivo, essa coisa de escutar. Porque como você sabe, eu comecei na igreja e até então, com meus pais evangélicos, eu tive contato com a musica da igreja. Meu pai que me ensinou a tocar, Seu Jeremias. Até que um dia um cara de um grupo que eu participei, que já não era mais essa igreja do meu pai, me deu um DVD do Chick Corea. Aliás, eu assisti na casa dele. Fiquei muito doido pelo DVD, aí pedi o DVD pra ficar assistindo em casa e ele fez uma cópia pra mim. E eu ficava assistindo aquele DVD porque era uma coisa muito nova pra mim, Chick Corea Akoustic Band. E eu ficava de cara com aquela forma de se tocar o jazz, de se traduzir um outro tipo de música que era diferente do tipo de música da igreja. E aí com um outro amigo (eu não tinha computador), eu pedi que ele baixasse todas as músicas, todos os discos do Chick Corea. E ele fez uma discografia pra mim num CD e eu passava o dia escutando. Daí eu fui conhecendo outros personagens do jazz através de amigos da igreja que eram músicos e sabiam que eu gostava, que começaram a trazer isso pra mim. Então foi aí que conheci Oscar Peterson, Ed Motta, a partir desse primeiro despertar que começou aos 15 anos de idade.
PA: Foi natural unir a linguagem do jazz com a pesquisa dos ritmos brasileiros e nordestinos, que fazem parte do cotidiano do pernambucano? Ou você pensava num projeto com relação a isso já desde e o Sangue Negro?
AF: Quando eu entrei na universidade, eu decidi entrar na AESO Barros Melo e estudei produção fonográfica, porque eu queria me posicionar como artista. E as pessoas que fazem Universidade Federal estão preocupadas em ser professor de piano. E não era o meio acadêmico que eu queria seguir, eu queria ser artista, seguir como artista. Então eu entrei na Barros Melo e comecei a ter contato com muita coisa da nossa cultura, o movimento manguebeat, Nação Zumbi e Chico Science, Alceu Valença, Lenine, Luiz Gonzaga, Dominguinhos, e eu fiquei de cara com a gama de coisas que a gente tem. Comecei a introjetar, a escutar e me envolver muito com essas coisas. E de uma forma natural, porque como eu já tinha esse envolvimento com o jazz, eu comecei a compor as músicas, os frevos, maracatu, baião, tudo com o jazz muito presente, na estética, na estrutura, na harmonia, colocando a improvisação do jazz nessa música. Porque o jazz era o que eu escutava e depois eu fui estudar numa escola em que a base era a harmonia jazzística, a prática de conjunto era em cima de jazz. Então, em toda a minha vida ali no início, eu estava ligado ao jazz. E quando eu me identifiquei com a música pernambucana, eu disse: “Caramba! Isso aqui eu já sinto que é meu e não sabia”. Isso me completa porque eu já estava muito carregado de jazz nesse momento, então eu consigo de uma forma muito natural introjetar o jazz com os ritmos nordestinos, afro brasileiros e ritmos do Brasil todo.
PA: Como você conheceu Hugo Medeiros e Jean Elton? Fiquei impressionada com a banda no show que assisti na Blue Note. Além deles serem muito bons, tocarem bem e sem repetir clichês do jazz, a banda seguiu muito entrosada do começo ao fim.
AF: Primeiro eu conheci Jean, com essa coisa de tocar na noite. Jean tocava num restaurante chamado Mingus, com um pianista fantástico, que era um monstro. Nessa de estar entrando no mercado, como pianista e tocando nos lugares, uma vez o pianista não pôde fazer e me chamou pra tocar no lugar dele. E ali eu conheci Jean e gostei demais dele, a gente se gostou logo de cara e começou a tocar junto. E aí eu fui tocando, tocando, até que um dia eu me tornei o pianista do Mingus. E aí a gente passou dois anos tocando ali e foram dois anos de laboratório, de muita conversa, de muita troca, de pensar música junto, de levar música para outro lugar. De dialogar, de se provocar, foi um período muito bacana. Desse período também eu estava começando a conhecer a galera da cena instrumental jazzística de Pernambuco. E comecei a tocar com a galera daqui. Foi daí que (e já de antes), tocando com essa galera, eu comecei a entender o meu processo de querer gravar um disco, que representasse as minhas ideias, que tivesse essa composição que também tem a ver com os tempos de hoje. A Encruzilhada, por exemplo, quando eu saía do meu bairro para ir pra faculdade, eu descia num lugar que chamava Encruzilhada para pegar o ônibus. Norte… Samba de César é uma homenagem a um professor de bandolim, Estudo 0, que é uma composição de Hugo Medeiros, que é uma música sem rótulo, não dá pra dizer: “Ah, isso é um samba, isso é um xaxado”. Subindo o morro, que é um frevo balada, porque ninguém sobre o morro correndo, você sobe o morro devagar, você fala com as pessoas. Então, quando eu compus essa música, eu compus pensando em como o cidadão subiria o morro sendo o frevo: o frevo teria que ser muito lento, mais lento do que o frevo de bloco. Nós temos o frevo canção, o frevo de rua e o frevo de bloco, que é o mais lento, quase próximo da marcha. E aí eu queria deixar esse meu registro temporal com a galera que eu acreditasse, que ouvisse a possibilidade de construir, em laboratório, as músicas, e chegar em um outro lugar. Foi aí que eu estava procurando um baterista e me disseram que tinha esse cara que chama Hugo Medeiros, que faria esse trabalho. Eu conheci o Hugo e fiz a proposta pra ele. Ele achou massa, mas de cara não rolou, porque eu estava envolvido em outros projetos. Mas, depois, eu procurei Hugo e Jean Elton e a gente se juntou e começou a gravar o disco.
PA: Como tem sido a recepção do som pelo Brasil e pelas cidades — de norte a sul — pelas quais tem passado? Tem algum lugar que não tocou e quer tocar?
AF: A repercussão e a recepção pelo Brasil têm sido maravilhosa. Eu posso dizer que a música prova para mim que não importa de onde a gente vem. Você tem uma cultura, você tem um jeito de criação, você tem uma condição social, aí você vai tocar pra uma outra pessoa que vem de uma outra estrutura familiar, uma outra criação, uma outra situação social, mas a música chega. Só que quando ela chega com verdade, quando ela chega tocando a outra pessoa, ela quebra toda essa construção, sabe? A música é uma das linguagens mais primitivas que a gente tem. Então ela vai mexer com nosso corpo através das frequências, da organização dessas frequências que vibram no nosso corpo. E aí é uma coisa que está totalmente ligada ao sentir e à sensibilidade. Você não tem palavras, não tem um código de comunicação que a outra pessoa vai responder falando teoricamente da música instrumental, do som. A pessoa simplesmente recebe e sente a vibração. E eu pude provar que, de norte a sul, todo mundo se envolveu com a música, saiu feliz do nosso show. Isso dentro e fora do Brasil. A tour da Europa foi incrível. A gente já tinha feito duas tours na Europa, essa foi a terceira, em julho desse ano. De lá a gente seguiu para Nova York, que também foi maravilhoso. Poderia dizer que foi incrível. Teve uma semana que toquei no Montreaux Jazz Festival, na academia, que são esses músicos do mundo que eles pegam e acreditam que são a possibilidade do novo jazz. Então eles me pegaram e também o Diego Figueiredo, os brasileiros. Na mesma semana vim pro Brasil e fiz o Sesc Instrumental, depois voltei para Nova York e fiz o Dizzy’s Club, lendária casa de jazz, que é do centro do jazz que é o Lincoln Center. Então fiquei: “Caramba, que dimensão o trabalho chegou, né?”. Eu fiz esses três shows na mesma semana, nos lugares mais importantes de jazz em Nova York e no Brasil. Isso pra mim afirma o trabalho que a gente vêm fazendo, que é um trabalho sério, que tem conteúdo e que tem um diálogo com esse jazz moderno e com as características da música brasileira.
PA: Como você acha que podemos ampliar os espaços de criação, circulação e recepção da música instrumental brasileira aqui no Brasil — saindo do eixo Rio-SP?
AF: Eu acho que a gente precisa de mais produtores, empresários e agitadores culturais por todo o Brasil. Eu posso falar inclusive de Pernambuco, que tem um outro sistema. Aqui a gente tem muitos festivais e o governo é um parceiro da cultura, digamos assim. É através do Funcultura que muitos discos são gravados aqui, que muitos projetos acontecem e que muitos projetos são realizados. Eu acho que essa coisa de ter agitadores e produtores culturais envolvidos é justamente para criar espaços que possibilitem a circulação de pessoas de fora do estado e de dentro do estado atuando numa casa em condições mínimas. Acho que uma das grandes dificuldades do Brasil é que o Brasil é muito gigante, tudo é muito distante. O eixo SP, muito mais que o eixo RJ, é onde funciona tudo. E, muitas vezes, isso causa o problema que é de uma galera que vai para SP, começa a tocar em SP e não consegue sair de SP. E tem uma galera que não consegue entrar nesse eixo SP. Tem uma outra galera que consegue circular em SP e no resto do Brasil. Essa é a parte mais difícil, você conseguir circular em SP e no Brasil, como um todo. Acho que é isso também, uma capacitação para os músicos, de como atuar nesse sistema, nesse mercado, de como ter uma postura, de quando dizer um não e de quando dizer um sim, da valorização do seu cachê, do couvert. Se há uma campanha dos músicos na organização para que haja uma tabela fora eixo RJ-SP, para que haja uma certa postura com as casas, e para que haja também esses produtores que vão criar os espaços, que vão estar preocupados em fazer projetos e fazer com que haja essa circulação, acho que a gente pode mudar o quadro sim.