A “Universidade Favela” de Edgar cria conexões globais a partir da quebrada

PoroAberto
4 min readMay 21, 2024

Em seu novo disco, Edgar, ao falar de sua quebrada, fala do mundo todo, como sugere a máxima. Não só porque canta em três línguas diferentes e recebe uma convidada japonesa, mas porque relata a experiência do homem negro periférico no ocidente — que se reproduz seja na periferia de Guarulhos, de Nova York, Londres ou Paris etc.

A Universidade Favela de Edgar é uma instituição que foi sendo construída ao longo de uma trajetória de batalha no âmbito pessoal e profissional. A cada álbum, Edgar coloca em prática suas habilidades como artista multi-linguagem. Depois de 2 álbuns e 3 EPs lançados, sabemos mais do que bem da ferocidade tanto de suas rimas, quanto de sua performance, sempre elaborada com elementos estéticos inovadores.

O álbum conta com diferentes produtores e participações, o que alarga a sonoridade explorada nos discos anteriores, traz ritmos eletrônicos mais dançantes e se conecta com o tal sul global. A primeira faixa, “Descansa Militante” e o single que precedeu o lançamento do disco, “Relatos Selvagens”, são uma colaboração de Edgar com o produtor francês Dang. Elas dizem muito sobre o tom adotado por Edgar no disco, com versos que evocam a putaria, muito comum no trap e no funk, que sobressaltam à mensagem que o rapper cunha para falar sobre a realidade.

“Descansa Militante” invoca o rapper Kendrick Lamar, ganhador de mais de uma dezena de Grammys, para jogar o “desabafo”: “Kendrick Lamar / Olha só, mas quem diria / Comecei na militância / E acabei na putaria”, o que não deixa de ser irônico porque a putaria é usada como metáfora ou adjetivo real, seja para definir nossa política nacional, as consequências do colonialismo ou a música contemporânea. O rapper afirma que “quem não gosta de política / por quem gosta vai ser governado”, criando uma dubiedade que é contínua ao longo do álbum. Seria a união de vertentes, a engajada e a explícita, uma estratégia ou uma fusão?

“Relatos Selvagens” pode ser dividida em 4 partes. A primeira, autobiográfica e crítica, é cantada em inglês; a segunda, o refrão; a terceira traz os mesmos versos do início em português; e o encerramento se dá com o refrão e uma extensão de seu tema: sexo. Os versos descrevem a arte como catalisadora de trajetória, responsável pelo centramento do autor no certo pelo certo. Mas o que dizer dos estilos nascidos na periferia e apropriado por brancos de classes abastadas? “Em 2007 / Roubar playboy era o mínimo / Mas agora eles cantam trap” — mas não basta dizer isso literalmente, será que com um refrão sensual a mensagem que está além chega?

Das 11 faixas, 4 foram produzidas pelo artista ítalo-indígena Nelson D — com quem Edgar já tinha lançado o single “Três Palavras”. Em “Original de Quebrada”, as bases chamam atenção porque se aproximam do trap e o canto falado de Edgar até lembra o estilo de outros artistas do gênero, como a carioca N.I.N.A., emulando a sensualidade da letra. Mais uma vez, as estrofes são como colagens. Cada parte se remete a uma ideia, seja ela irônica ou direta, e ele apresenta pela primeira vez um discurso de auto-afirmação.

Nelson D aparece também em “Paso Firme”, parceria com a artista chilena Luta Cruz, e em “Origami”, com a japonesa Maia Barouh. Cada uma explora elementos diferentes, além das línguas nativas das convidadas, reunidas no álbum pelos conhecimentos adquiridos e contatos feitos a partir da “universidade favela”.

A diluição de fronteiras globais e musicais continua quando entra no jogo o MC e produtor de Grime Jammz. Natural de Londres, com descendência caribenha, ele é fundador do selo I Am Grime e tem cirulado pela cena brasileira ao lado dos principais nomes do Brime, como Febem e CESRV. Jammz faz uma participação especial rimando em “Camisa 10”, com produção de Nelson D. A faixa é marcada por versos que correm velozes e base grave. Jammz produziu as faixas de encerramento “Canção de Amor” e “Antes que o mundo acabe”, que seguem mais ou menos mesma linha rítmica de “Camisa 10” — sendo que a primeira parece mais se aproximar do grime-pagodão do baiano Vandal.

Ao encerrar o disco, Edgar põe na mesa a ansiedade gerada pela distopia de um mundo que caminha para sua própria destruição. Até mesmo desse sentimento é preciso ter consciência para conseguir chegar até o fim. Dengue, aquecimento global, violência policial, racismo, intolerância religiosa e desigualdade são temas que surgem ao longo do trabalho e parecem concentradas nesse encerramento. É preciso estar a par das mazelas do mundo, mas seguir firme no auto-conhecimento se você é tudo aquilo que o mundo não deseja — ou ao menos a maior parte dele, os donos do poder e do dinheiro.

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