A trilha sonora e os acertos do enredo de “Cangaço Novo”
Nova série da Amazon toca nomes de destaque da música brasileira independente
Se você não é do tipo de pessoa que não suporta o realismo das produções audiovisuais brasileiras, é bem provável que você goste da nova série da Amazon, “Cangaço Novo”, dirigida por Fernando Mendonça e Aly Muritiba. Seu gênero, enredo e roteiro não são nada exatamente novo em relação ao que conhecemos — como o próprio nome diz, traz o cangaço histórico e o contemporâneo, violência conectada à desigualdade social e os problemas socio-políticos característicos do semi-árido brasileiro. E, além, obviamente, das tramas amorosas, a série é rápida e dinâmica e os episódios praticamente não trazem cenas ou dramas que se prolongam além da conta, entediando o espectador.
Ao começar a assistir a série, me chamou atenção, óbvio, a trilha sonora. Logo a primeira cena, um enterro, em preto e branco, é acompanhada pela “Toada de Gado”, gravada pelo Quinteto Violado, que traz o canto típico dos vaqueiros nordestinos, o aboio. O enterro é interrompido por uma cena de ação, agora colorida, acompanhada de um trecho instrumental da regravação de “Da Lama ao Caos” pelo Nação Zumbi exclusivamente para série.
Como o primeiro episódio é marcado pelo suspense, afinal, a história e as personagens que compõem um cenário tenso ainda estão sendo apresentados. Por isso, as trilhas de fundo vão dando o tom dessas sensações. Especificamente quando estamos diante da paisagem do semi-árido, ouvimos uma composição em que se destacam os dedilhados de uma viola e seu agudo característico.
Confesso que fiquei incomodada que uma série sobre o cangaço nos dias de hoje trouxesse, já no primeiro episódio, as guitarras e percussões hardcore-manguebeat de “Da Lama ao Caos”, porque a primeira associação inevitável é com o que já conhecemos. Seria essa série mais uma repetição de clichês que marcam as produçoes sobre os contextos nordestinos? A série faria uma releitura em cima daquela estética e sonoridade trazida no clássico “Baile Perfumado”, de Lírio Ferreira, cuja trilha tem Chico Science & Nação Zumbi, Mestre Ambrósio, Fred ZeroQuatro, Stella Campos etc.?
O único jeito de saber era continuar assistindo. E nos episódios seguintes a conformação da trilha com o roteiro e a fotografia da série vai ficando significativamente melhor. “Cangaço Novo” se passa na fictícia cidade de Cratará, no Ceará, e foi gravada entre diversas cidades da Paraíba e do próprio Ceará (Cariri e Boa Vista). Os pricipais conflitos de seu enredo envolvem questões antigas que se perpetuaram e se transformaram na região, que compõem a história do Brasil desde a República Velha: a disputa política em pequenos municípios agrários, que enfrentam a dificuldade do clima, mas também as questões políticas locais que, geralmente, desfavorecem a população.
Ou seja, desenham-se relações de mandonismo, clientelismo e coronelismo (para lembrarmos, aqui, do gigante José Murilo de Carvalho, recém falecido) que são determinantes para a estrutura social que se desenha e os modos de vida. O cangaço atualizado da série é o mesmo do que tem sido reivindicado na vida real — é a forma de caracterizar os cinematográficos assaltos a banco em cidades de interior do país. Se tal prática foi já bastante observada pela Sociologia nas últimas décadas — por exemplo, com os estudos de referência do (meu ex-) professor Eduardo Paes Machado e a incidência de casos no interior da Bahia -, as pesquisas continuam sendo atualizadas, acompanhando as mudanças do modus operandi dos grupos e seus locais de atuação, de Norte a Sul do país. Eles reforçam características que se perpetuam, como o uso não só instrumental, mas também performático da violência, em que a grande maioria dos assaltos constituem-se em ações “cinematográficas”.
O “banditismo por uma questão de classe” tende a romantizar o bandidos (sou a favor) e humanizá-los através da revelação da história pessoal de cada um, ainda que no mundo real as coisas sejam infinitas vezes mais complexas — envolvem a definição de conceitos como crime organizado, cultura do risco, habitus precário etc. A figura do bandido destemido também já foi notada pela sociologia através de suas representações culturais — como lembra Edimílson Lopes Júnior ao citar a presença do traficante no “Proibidão”, funk carioca, e no “Narcorrido”, do México.
Outro elemento que jamais poderia deixar de ser representado também está ali, a religião, aliada à reivindicação social e liderada pela figura de uma mulher, a tia Zeza — se diferindo tanto das conhecidas batalhas que marcaram a velha república, como Canudos, que tinha a figura mística de Antônio Conselheiro; quanto de líderes carismáticos, como Padre Cícero. Zeza também não é uma pessoa “interna” de qualquer instituição religiosa. Cuida da capela local, que é também ponto de apoio do cangaço, mas nunca foi freira, nem é santa.
Aliás, o papel das mulheres é destacado nas personagens Dinorah, Zeza, Leinianne e Dilvânia, bem como o machismo cotidiano é mostrado em suas formas sutis e extremas — desde que um homem do bando zoa Dinorah dizendo que ela tem que depilar, até a questão tensa do estupro, que costura toda a trama.
Mas voltemos à trilha sonora, né? A direção musical e a música original são assinadas pelo veterano produtor Beto Villares e Submarino Fantástico que, sem apego à nostalgia, dosa muito bem as canções escolhidas, bem como as instrumentações. A música adicional é do guitarrista sergipano Allen Alencar. Aliás, os autores da trilha são, quase todos, de um mesmo circuito da música alternativa contemporânea.
Daniel Groove lança mão de uma balada breguinha, típica do compositor cearense, “Vontade de Maldade”; Aíla e Jáder ficam com “Me liga”; a cearense Jeyce Viana vem com a dançante “Sabe Nada”; o também cearense Getúlio Abelha entra com Ilusão; e a baiana Rachel Reis traz “Caju”. A personagem principal, Dinorah, vivida por Alice Carvalho, deu voz à sua própria versão de “Espumas ao Vento”, de Fagner. E aí pra mim vem o auge: quando entra “BALAH IH FOGO”, de Vandal, a melhor escolha (mesmo não sendo inédita para a série)!
Das músicas cujas composições datam das décadas de 1960 e 1970, temos “Soluços”, de Jards Macalé; “Carcará”, interpretada por Maria Bethânia (não sei se gostei da inclusão dessa, poderia ter ido mais longe, né?); de novo Fagner, “Natureza Noturna”; “Tudo que você podia ser”, Milton; o trio psicodélico Ave Sangria, “Dois Navegantes”; “É preciso dar um jeito meu amigo”, Erasmão.
De resto, o time musical é tão brabo quanto o bando de Cratará: tem Siba, o próprio Beto Villares, Allen Alencar, Ingo Andre, Kenzo Nogueira, Caue Gas e outros.